Lula aposta nos programas sociais como estratégia por eleitorado evangélico
Derrotado pelo bolsonarismo nas pautas morais, governo prioriza apelo do empreendedorismo e da ascensão social para chegar a essa parcela da população

Durante a campanha eleitoral de 2022, poucos dias antes do segundo turno, Lula divulgou uma carta ao povo evangélico em que reforçou o seu compromisso com a liberdade de crença, citou iniciativas de seus mandatos anteriores para esse segmento e prometeu estimular a parceria com igrejas para tirar o povo da miséria. No documento, o então candidato à Presidência ressaltou o trabalho social de lideranças religiosas com os mais pobres. “O povo brasileiro está numa condição de desespero, e precisaremos muito da ajuda das igrejas para, o quanto antes, reverter essa situação”, escreveu. A tática do petismo era clara: acenar com o seu vasto arsenal de programas sociais para uma parcela da população que é, em sua maioria, periférica e de baixa renda. De pregação de campanha o negócio se transformou em política do governo, com o objetivo claro de tentar diminuir o abismo que distancia a esquerda do eleitorado evangélico, principalmente desde a ascensão do bolsonarismo.

Principal nome na linha de frente dessa política, o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias, vem nos últimos meses assinando protocolos de intenção com associações e igrejas para que elas possam identificar e inscrever no Cadastro Único (CadÚnico) pessoas em condições de ser beneficiadas por programas sociais. Cerca de oitenta entidades religiosas aderiram à parceria, a grande maioria evangélica, entre elas várias denominações da Assembleia de Deus, a maior do segmento no Brasil. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), uma das maiores entidades católicas do país, também fechou acordo. Segundo a pasta, cerca de 2 000 líderes religiosos passaram por capacitação para atuar em programas sociais no Rio de Janeiro, o estado que tem sido o principal alvo da investida — não por acaso reduto do clã Bolsonaro e base de líderes evangélicos bolsonaristas influentes, como o pastor Silas Malafaia. Há iniciativas também em Brasília e no Piauí, terra do ministro, mas a intenção é expandi-las para todos os estados. Em torno de 5 000 pessoas em situação de vulnerabilidade social foram apontadas por essas lideranças para receber benefícios ou participar de cursos de qualificação profissional.
A iniciativa ganhou força com a sanção em outubro do programa Acredita no Primeiro Passo, que prevê ações como capacitação profissional e acesso a microcrédito com juros baixos para pequenos empreendedores. “Essa parceria é fundamental para fortalecermos nossas ações de combate à pobreza e promoção do desenvolvimento social”, afirmou Wellington Dias ao assinar um protocolo com entidades do Rio de Janeiro, em junho. Os termos de compromisso têm duração de três anos, com possibilidade de prorrogação, e preveem a implementação de diversas ações conjuntas para acelerar a inclusão social e produtiva da população mais pobre.
A tese do governo é aproveitar a capilaridade das igrejas para chegar aonde o estado não chega. Segundo o Censo de 2022, divulgado pelo IBGE, as periferias têm mais estabelecimentos religiosos do que a soma de instituições de ensino e de saúde — nas favelas, há 18,2 igrejas para cada hospital e seis igrejas para cada escola.
O Planalto também quer usar o Acredita para atender à demanda crescente da população da periferia pelo empreendedorismo, um desejo que ficou bem claro nas eleições deste ano. O intuito é realizar até 2026 cerca de 1,25 milhão de transações de microcrédito, o que poderá injetar mais de 7,5 bilhões de reais na economia. As parcerias envolvem inclusão em programas sociais como Bolsa Família e Minha Casa, Minha, Vida. O papel básico das igrejas é verificar o enquadramento das pessoas nas regras do governo e encaminhar os cadastros. “As igrejas evangélicas entendem os processos que vivem as populações periféricas, as populações rurais, onde as políticas públicas demoram a chegar. Elas têm conhecimento de causa”, diz Gutierres Barbosa, coordenador do setorial inter-religioso do PT.

Em outra frente de esforços na mesma direção, Lula sancionou recentemente a criação do Dia Nacional do Pastor e da Pastora Evangélica e do Dia da Música Gospel. O governo ainda articula pela aprovação da proposta de emenda constitucional 5/2023, a “PEC das Igrejas”, que amplia a imunidade tributária a templos religiosos. O texto foi apresentado pelo deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, que atua diretamente nas negociações com o Ministério da Fazenda. “A parceria social com as igrejas evangélicas é muito importante. Ao mesmo tempo, é necessário que o presidente Lula abra um diálogo permanente”, defende a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), uma das representantes do segmento no Congresso.
Além da busca pelo apoio do eleitor evangélico, Lula avança na cooptação de lideranças políticas ligadas à comunidade. Na Câmara, a troca de comando na Frente Parlamentar Evangélica, em fevereiro de 2025, pode ser um fator positivo para o Planalto. O deputado Otoni de Paula (MDB-RJ), ex-apoiador de Bolsonaro e neoaliado de Lula, é o favorito para presidir o poderoso agrupamento, que tem 220 deputados. Em outubro, ele participou do evento para a criação do Dia da Música Gospel e elogiou o presidente, o que causou críticas do bolsonarismo. “É muito importante que a gente avance na capacidade da frente de dialogar com o governo”, diz. A ala mais bolsonarista do grupo, porém, é resistente ao nome de Otoni justamente por causa da aproximação com Lula. Nos bastidores, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e Eli Borges (PL-TO) trabalham pela candidatura de Gilberto Nascimento (PSD-SP). Já o atual presidente, Silas Câmara (Republicanos-AM), defende o nome de Otoni. Tradicionalmente, a escolha do novo líder se dá por consenso, sem eleição.

Como um passo futuro dentro da mesma política de tentativa de melhorar a relação de Lula com esse segmento político, cogita-se a nomeação de um ministro evangélico em uma eventual reforma em 2025. Entre os cotados estão Eliziane Gama, a deputada petista Benedita da Silva e o advogado-geral da União, Jorge Messias. O deputado Marcos Pereira, presidente do Republicanos, é outra possibilidade. Bispo licenciado da Universal, ele abriu mão de disputar a presidência da Câmara para apoiar Hugo Motta e pode ganhar um prêmio de consolação que aproximaria mais o Republicanos de Lula — a sigla já tem o ministro dos Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho.
O esforço petista pelos evangélicos não é despropositado: o segmento é um dos que têm se mostrado mais arredios a Lula. Pesquisa CNT/MDA de avaliação do governo feita em novembro mostra que a desaprovação ao trabalho do petista é maior entre os religiosos dessa vertente, que também está mais inclinada ao bolsonarismo, atraída por pautas de costumes, como a rejeição ao aborto, às políticas de gênero e à descriminalização de drogas. Embora não tenha dado tração a nenhum desses temas em seu atual governo, Lula sempre ficou exposto à exploração política pela ala bolsonarista, muitas vezes baseada na disseminação de fake news. Em setembro de 2023, por exemplo, deputados viralizaram uma notícia falsa de que o governo teria decretado a instalação de banheiros unissex em escolas e instituições de ensino no Brasil. Como o governo dificilmente vai conseguir algum avanço por meio da fé e da discussão de pautas de cunho moral, o investimento se dá agora por meio da estratégia de mirar uma parte sensível desse eleitorado e das lideranças evangélicas com outro apelo: a oferta de prosperidade e de ascensão social. Resta saber se essa crença dará resultado.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922