Jogo político no Congresso ameaça governo e trava projetos prioritários
Ao ameaçarem não votar pautas importantes, deputados e senadores mostram que demandas pessoais e políticas estão acima dos interesses do país
Em fevereiro deste ano, na cerimônia de abertura dos trabalhos legislativos, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), subiu à tribuna carregando uma bagagem de insatisfação. Pressionado pela queixa de colegas com a demora do governo para distribuir cargos e verbas, sentou-se ao lado dos ministros Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais), que representavam o presidente Lula, e fez um dos seus pronunciamentos mais incisivos. Lira cobrou o cumprimento de acordos, defendeu a autonomia parlamentar para votar projetos e bradou que o Congresso não seria um mero “carimbador” do Orçamento, que, segundo ele, “pertence a todos”, e não apenas ao Executivo. Dez meses depois, no apagar das luzes de 2024 e também do mandato do alagoano à frente da Câmara, o discurso segue patente e vem acompanhado da ameaça de duras consequências ao governo. Insatisfeitos com a suspensão de repasses de recursos para seus redutos eleitorais, deputados e senadores ensaiam um motim capaz de travar a tramitação de projetos considerados prioritários, inclusive do novo pacote de ajuste fiscal.
O motivo da rebelião são as notórias emendas parlamentares, recursos cuja destinação é indicada por deputados e senadores. Há uma década, o Executivo só liberava o dinheiro quando e na quantidade que quisesse. Hoje, na esteira do processo de fortalecimento do Legislativo, o quadro é diferente. As emendas atingiram a cifra recorde de 50 bilhões de reais em 2024 — e a maior parte tem de ser desembolsada obrigatoriamente pelo governo. Lula sempre manifestou contrariedade à situação e declarou que queria conter a sangria. O presidente não cumpriu a promessa, mas em agosto o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino, indicado ao cargo pelo petista, suspendeu o pagamento das emendas impositivas e também de valores pendentes do antigo orçamento secreto, alegando falta de transparência na destinação das verbas. Estava armada a confusão. O próprio Lira acusou Dino de fazer uma tabelinha com o governo no caso. Numa tentativa de conter uma crise, ficou combinado que representantes dos Três Poderes negociariam novas regras para garantir transparência ao caminho do dinheiro — qual parlamentar indicou, para qual projeto e beneficiando qual município.
O Congresso, então, aprovou uma proposta estabelecendo novos critérios. Com o fim das eleições municipais, deputados e senadores voltaram ao trabalho em Brasília tendo como prioridade conseguir a retomada dos pagamentos. As cobranças foram ganhando tração até que Dino, no início deste mês, desbloqueou as verbas, mas manteve uma série de exigências, como a obrigatoriedade de identificação do autor de uma emenda mesmo quando ela, em tese, foi decidida por uma comissão. Os parlamentares viram na decisão uma forma de dificultar o desembolso dos recursos e, mais uma vez, acusaram o ministro do STF de prestar serviço ao Planalto. A confusão, armada há meses, chegou ao ponto de ebulição. Em retaliação, parlamentares avisaram ao governo que não votariam o plano de ajuste fiscal anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O pacote prevê uma economia de 300 bilhões de reais até 2030, por meio, entre outros, da imposição de um teto para a política de valorização do salário mínimo e de regras mais rígidas para a concessão de benefícios sociais e previdenciários. Diante do azedume parlamentar, restou ao presidente Lula, antes de sua internação, entrar em campo para tentar resolver a questão. Ele procurou Flávio Dino, seu ex-ministro da Justiça, para dizer que precisava de ajuda e que a boa relação com o Congresso dependia disso. Na sequência, a Advocacia-Geral da União (AGU) questionou o STF sobre a liberação das emendas. Dino rejeitou na última segunda-feira, 9, os pedidos de flexibilização apresentados pela AGU e respondeu que os pactos políticos “não são superiores à Constituição”. Aí, o caldo entornou de vez. Horas depois da decisão, uma manobra impediu a leitura do relatório que regulamentava a reforma tributária. Apenas dez parlamentares marcaram presença na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ), e a sessão nem sequer pôde ter início. Depois, Lula convocou às pressas os presidentes da Câmara e do Senado para uma reunião. No encontro, o ministro Rui Costa explicou que a decisão de Dino não era tão dura assim e que ela criava condições para a liberação imediata das emendas. O chefe da Casa Civil também prometeu a edição de uma portaria para abrir caminho ao pagamento de cerca de 7 bilhões de reais ainda neste ano. O documento foi tornado público em menos de 24 horas.
A promessa desanuviou o ambiente, mas não completamente. Além de esperarem que o dinheiro efetivamente saia, parlamentares reclamam de uma suposta trama oficial para criminalizar as emendas, por meio de investigações de órgãos de fiscalização. Na terça-feira 10, a Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União levaram às ruas uma operação que investiga corrupção e lavagem de dinheiro com o desvio dessas verbas. Um dos alvos foi o vereador Francisquinho Nascimento, que, ao ser abordado, jogou pela janela uma sacola com cerca de 200 000 reais em dinheiro vivo. Francisquinho é primo de Elmar Nascimento, líder do União Brasil. Horas após a operação, o deputado, que não é investigado no caso, declarou ser “muito difícil” a aprovação do pacote fiscal neste ano por acreditar que não haveria tempo hábil. Em entrevista na última terça-feira, o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, evitou dar prazos para votar os projetos econômicos. Ele ainda esgrimiu a tese de que eventual atraso na análise do pacote tem mais a ver com seu conteúdo polêmico do que com a questão das emendas, tratada a ferro e fogo nos bastidores.
A própria bancada do PT manifestou insatisfação com as normas propostas para o pagamento de benefícios previdenciários. “O problema não é o dinheiro, nem a emenda. O Congresso tem as suas atribuições, tem as suas responsabilidades. Os projetos chegaram há poucos dias”, afirmou Lira. Depois, admitiu o óbvio ao tratar das emendas. “É um assunto que ferve, além de toda a insatisfação pelo não cumprimento de uma lei que foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República.” No Senado, depois das dificuldades iniciais, foi finalmente aprovada a regulamentação da reforma tributária, que agora também depende de votação da Câmara. O anúncio do governo de que pagará bilhões de reais em emendas até o fim do ano ajudou a destravar a tramitação. “Sem as emendas, a gente não consegue avançar. Mas o presidente Lula foi muito inteligente em chamar logo os presidentes da Câmara e do Senado, e o cenário foi mudando”, disse a VEJA o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP). Resta saber se haverá tempo hábil para essa operação ainda em 2024.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923