Investigação do STF definirá processo que pede a cassação de Bolsonaro
A ação, sobre financiamento ilegal de campanha por meio do uso maciço do aplicativo WhatsApp, preocupa o Palácio do Planalto
Há quase dois anos hiberna no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um processo que, em tese, pode levar à cassação do mandato de Jair Bolsonaro e do vice Hamilton Mourão. Segundo os autores da ação, três partidos de oposição, o resultado da eleição de 2018 teria sido influenciado a favor do presidente por disparos de mensagens contendo ataques a adversários e notícias falsas. O uso em si de propaganda mais agressiva contra concorrentes não é relevante o suficiente para levar à perda de mandato, mas no caso de Bolsonaro as suspeitas são de que teria havido financiamento ilegal da campanha por meio do uso maciço do aplicativo WhatsApp — o que seria uma forma moderna de lançar mão do velho e conhecido caixa dois eleitoral. O processo tem tudo para não dar em nada, mas preocupa o Palácio do Planalto.
No Brasil, se tornou tradição partidos ou candidatos derrotados ingressarem com ações na Justiça para reclamar do resultado das eleições. Isso aconteceu em todas as disputas presidenciais desde a redemocratização (veja o quadro na pág. 34), mas nenhuma foi bem-sucedida. No caso da chapa de Bolsonaro, caberá ao novo corregedor do TSE, ministro Luis Felipe Salomão, a missão de finalizar as investigações e agendar a data do julgamento. O magistrado já anunciou que quer encerrar o processo até o fim do ano. Sua principal tarefa agora é estabelecer parâmetros que poderiam caracterizar a interferência ilegal no pleito. Reservadamente, o magistrado já confidenciou a pessoas próximas que o crime eleitoral estaria demonstrado na hipótese de apoiadores do presidente terem “investido” nos disparos de mensagens o equivalente a pelo menos 10% da despesa total da campanha.
Essa tese acendeu a luz amarela no Palácio do Planalto. Na prestação de contas oficial, a campanha de Bolsonaro custou 2,4 milhões de reais. Portanto, se ficar demonstrado que houve disparos ilegais num valor igual ou acima de 240 000 reais, 10% do valor total, o presidente e o vice Hamilton Mourão poderiam perder os mandatos. Há outro motivo de preocupação. A Justiça eleitoral não exige que o candidato tenha conhecimento da irregularidade para que o crime seja caracterizado. Na prática, isso significa que, se for demonstrado, por exemplo, que empresários contrataram os disparos, gastaram um valor que atingiu o tal limite e que o presidente foi beneficiado com isso, o processo pode ganhar novos contornos. Por ora, a avaliação dos juízes que julgarão a chapa Bolsonaro-Mourão é a de que não há no processo qualquer evidência de que algo nessa direção tenha ocorrido.
O Planalto, porém, está em estado de alerta. Uma característica da personalidade de Jair Bolsonaro, como se sabe, é o apego a teorias conspiratórias. O presidente suspeita que há uma maquinação para tirá-lo do cargo, trama que envolveria uma combinação entre o processo do TSE e dois inquéritos que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) instaurados para apurar a origem de ataques virtuais a autoridades e o incentivo a atos considerados antidemocráticos. Em maio, o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelas investigações, determinou a quebra dos sigilos, a partir de julho de 2018, portanto às vésperas da campanha, de notórios bolsonaristas, como o empresário Luciano Hang, da Havan. A decisão reforçou a convicção do presidente de que ele está, sim, sendo investigado nos inquéritos relatados por Moraes. A suspeita aumentou ainda mais na semana passada, quando o deputado Eduardo Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro foram intimados a depor como testemunhas. “Essa intimação prova que há algo estranho nisso tudo”, avalia um assessor do presidente.
Teorias à parte, a apuração sobre a difusão de notícias falsas deve mesmo apontar a direção que o caso vai tomar. Em junho passado, o TSE autorizou que o STF compartilhe as informações obtidas na investigação. O corregedor Luis Felipe Salomão vai se reunir nos próximos dias com o ministro Alexandre de Moraes para saber se o inquérito descobriu algo que pode ser útil ao processo eleitoral. Recentemente, o presidente foi aconselhado a perguntar formalmente ao Supremo se ele ou seus familiares são investigados. Bolsonaro descartou a ideia. Um conselheiro chegou a sugerir ao presidente que ingressasse com um recurso judicial pedindo ao TSE que limite as investigações de caixa dois na campanha às mensagens disparadas via WhatsApp, por serem o objeto inicial da denúncia apresentada à Justiça Eleitoral pelo PT, o PDT e o Avante. Por essa tese, qualquer suspeita ou mesmo provas que apareçam envolvendo outras mídias, como Facebook e Twitter, não poderiam ser usadas por estarem fora do escopo original da apuração. (Detalhe: é de supor, diante dessa sugestão preventiva do conselheiro, que algo não desejado possa emergir das quebras de sigilo dos apoiadores bolsonaristas.)
Argumento semelhante funcionou no julgamento da cassação da chapa formada por Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB). Em dezembro de 2014, partidos de oposição questionaram a reeleição da presidente. Também alegavam abuso de poder econômico e uso de caixa dois. O processo ficou dormitando por meses, apesar das descobertas que a Lava-Jato havia feito sobre o esquema clandestino de financiamento de campanha utilizado pelos petistas. Dilma sofreu impeachment antes de o processo eleitoral ser julgado. Temer, que foi beneficiado pelo mesmo esquema e também poderia perder o mandato, invocou em sua defesa que o tribunal estaria impedido de usar as descobertas da Lava-Jato que não constavam na denúncia dos partidos. Os ministros haviam incluído no processo delações obtidas no escândalo de corrupção que traziam acusações extremamente graves e comprometedoras contra Temer. O recurso do presidente foi acatado e ele acabou absolvido. Em tese, não há motivos para Bolsonaro estar tão preocupado.
A TRADIÇÃO É NÃO PUNIR
Todos os presidentes eleitos desde a redemocratização foram alvo de acusações no TSE que, em tese, poderiam levar à cassação de seus mandatos. Todos foram absolvidos
Fernando Collor
Foi acusado de abuso de poder e prática de crime eleitoral pelo uso de servidores públicos de Alagoas na campanha presidencial. O TSE concluiu que os funcionários participaram por vontade própria. Em outubro de 1992, o presidente sofreu um processo de impeachment por outra razão.
Fernando Henrique Cardoso
No primeiro mandato, Fernando Henrique Cardoso foi acusado de se beneficiar eleitoralmente por ter sido ministro do governo Itamar Franco. No segundo mandato, o TSE investigou, entre outras coisas, se ele usou a máquina administrativa para influenciar uma convenção partidária. Nada aconteceu.
Lula
Durante o primeiro mandato, uma investigação judicial foi aberta para apurar abuso de poder econômico e uso de caixa dois pelo então presidente. A ação foi movida pela oposição depois que a Polícia Federal flagrou um grupo de petistas comprando um dossiê forjado para ser usado contra opositores.
Dilma Rousseff
De todos os ex-presidentes, Dilma Rousseff foi quem enfrentou o mais sólido processo de cassação. A chapa foi acusada de usar caixa dois na campanha de 2014, o que foi amplamente demonstrado pela Lava-Jato. A petista sofreu impeachment por outro motivo, a ação prosseguiu sob a gestão do vice Michel Temer, que acabou absolvido.
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705