Impasse político: os interesses por trás dos embates entre congressistas e o governo Lula
Casos como o do IOF ocorrem mais por forças corporativas e eleitorais — e menos em torno do mérito das pautas que são fundamentais ao país

Com a autoconfiança que lhe é peculiar, o presidente Lula achou que conseguiria aprovar a agenda do governo no Congresso costurando acordos por cima, com os comandantes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Apesar da fama de infalível dentro do PT, ele errou no diagnóstico. Hoje, a balança de poder entre Executivo e Legislativo não é a mesma de seus dois mandatos anteriores. Deputados e senadores não ficam mais de pires na mão atrás do Palácio do Planalto, controlam uma fatia de 50 bilhões de reais do Orçamento, nem sempre priorizam o debate de projetos e, muitas vezes, preferem atuar na arena das redes sociais. Um Parlamento mais independente em relação ao governante de turno tem mais condições de conter tentações autoritárias ou malabarismos econômicos — e pode ser, portanto, benéfico para o país. Não foi o que ocorreu no primeiro semestre deste ano, quando os congressistas apostaram em pautas corporativistas, contemplaram lobbies poderosos e deixaram em segundo plano propostas de interesse do país.
Apesar de pesquisas de opinião e analistas apontarem como desafios urgentes temas como segurança pública, equilíbrio das contas públicas e o encarecimento do custo de vida, nada mobiliza tanto deputados e senadores como as emendas parlamentares, dinheiro que eles reservam na lei orçamentária para seus redutos eleitorais. A lógica é conhecida. Se as verbas são liberadas, projetos do governo tramitam. Caso contrário, são travados ou rejeitados. O fluxo de caixa às vezes é tão ou mais importante do que o mérito das propostas na definição do destino de assuntos relevantes. É o que está ocorrendo na novela em torno do decreto que aumentou o imposto sobre operações financeiras (IOF), que enfrentou a oposição de setores econômicos e da cúpula do Congresso desde a sua edição. Diante da resistência anunciada, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, combinou com Motta e Alcolumbre, numa reunião da qual também participaram líderes de partidos, que o governo substituiria o decreto por outras medidas compensatórias. O acerto parecia tão bem encaminhado que Motta classificou de “histórico” o encontro entre congressistas e integrantes do governo, mas a aparente harmonia não durou muito.

Uma semana após a reunião, a Câmara aprovou por ampla margem um requerimento que pedia urgência para a análise de proposta que derrubava o decreto do IOF. Foi a forma encontrada por Motta de atender aos apelos dos colegas e pressionar o governo a acelerar o desembolso das emendas do Orçamento de 2025. Derrotado na preliminar, o governo correu para tentar apagar o incêndio, acelerou a liberação dos recursos e acreditou ter conseguido duas semanas para encontrar uma alternativa. O prazo se encerraria no próximo dia 30. Na terça-feira 24, no entanto, Motta anunciou que a questão seria colocada em votação no dia seguinte. O decreto acabou rejeitado por 383 a 98. Para justificar a decisão, parlamentares entoaram um discurso em defesa da austeridade e alegaram que o governo precisa fazer o dever de casa e cortar gastos, já que a sociedade não aguentaria uma nova ampliação da carga tributária. O argumento é pertinente, mas não revela por completo as razões dos deputados.
A derrubada do decreto foi antecipada como forma de avisar que a Câmara não aceita que o pagamento de emendas individuais deixe de ser obrigatório, como acontece há dez anos. A possibilidade de o caráter impositivo acabar seria debatida na sexta-feira 27 entre o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino, relator de uma ação sobre o assunto, e representantes do Legislativo. Desde o início do terceiro mandato de Lula, Dino tem tomado decisões para tornar as emendas mais transparentes. Para os parlamentares, o ministro age em conluio com o governo com o objetivo de reduzir o poder do Congresso. Foi por isso que deputados e senadores, num gesto de revide, atrasaram a votação do Orçamento deste ano, aprovado apenas em março.

Enquanto cobrava corte de gastos pelo Executivo, a Câmara propôs um projeto para permitir que os parlamentares acumulem aposentadorias como congressistas com o salário recebido pelo exercício do mandato. A Casa também aprovou um projeto que aumenta o número de deputados de 513 para 531, a um custo de 65 milhões de reais por ano, sem considerar o impacto de eventual efeito cascata nas assembleias legislativas. Essa votação foi uma resposta à decisão do STF que determinou ao Congresso redistribuir as 513 cadeiras da Câmara de acordo com os dados populacionais do censo de 2022 do IBGE. Como na redistribuição alguns estados passariam a ter menos deputados e outros mais, num jogo de soma zero, decidiu-se pelo caminho mais fácil politicamente e mais oneroso ao contribuinte — que, obviamente, não apoia a iniciativa. Pesquisa Datafolha mostrou que 76% dos entrevistados são contra o aumento do número de deputados. Mesmo assim, o projeto também foi aprovado na noite da última quarta-feira pelo Senado, que incluiu uma regra dizendo que não haverá aumento de despesa. A conferir.
O cardápio corporativista conta com mais um item. Em sessão realizada no último dia 17, deputados e senadores mudaram o percentual de reajuste do fundo partidário, que consome mais de 1 bilhão de reais por ano, adotando, obviamente, um índice maior de correção. Na mesma ocasião, houve ainda uma cortesia bilionária com o chapéu alheio. Os parlamentares derrubaram vetos do presidente Lula a “jabutis” inseridos no marco das eólicas em alto-mar. A decisão beneficiou empresários do setor de energia e resultará em quase 200 bilhões de reais em custos acrescidos à conta de luz até 2050. A fatura será paga pelo consumidor. Na primeira metade do mandato de Lula, o Congresso aprovou medidas de ajuste fiscal, inclusive novos impostos, e a reforma tributária. Agora, defende correções pelo lado da contenção das despesas. Motta disse recentemente que o governo não pode sair gastando a rodo e depois pedir que o Legislativo assuma o volante e corrija o rumo. Ele tem razão, mas também esgrime o argumento como forma de se eximir de certas responsabilidades.

O Congresso tem poder de sobra para ajudar o país, mas muitas vezes prefere entoar discursos eloquentes a analisar projetos estruturantes. Quando ainda era presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) declarou que tentaria tirar do papel a reforma administrativa, considerada fundamental para conter a expansão da dívida pública. Não conseguiu. Quando chefiava o Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) discursou em defesa do projeto que limita os supersalários, mas nada foi feito. As duas propostas estão em banho-maria. No caso dos incentivos fiscais, os parlamentares quase sempre mostram empenho para defendê-los. Foi assim na regulamentação da reforma tributária, repleta de benefícios para setores com lobby poderoso. “A situação do país é grave e é preciso ter responsabilidade. Ninguém quer abrir mão de nada. Quem está ganhando acima do teto quer continuar ganhando. O parlamentar não quer corte de emenda. O governo não quer discutir determinado assunto porque desagrada a sua base”, reconheceu Motta.
Atualmente, tramitam na Câmara a PEC da Segurança Pública e o projeto que garante isenção de imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais. Em vez de serem debatidos no mérito, os textos se tornaram motivo de embate eleitoral entre governistas e oposicionistas e não avançaram até agora. A disputa eleitoral também deve contaminar a CPI criada para investigar o roubo de aposentados do INSS, que já teve seu requerimento de instalação lido, mas só começará a funcionar no segundo semestre. A lista de projetos é extensa, mas tem sido deixada de lado, em alguns casos, por causa de interesses menores. A Câmara, por exemplo, gastou energia para encaminhar a cassação do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), que agrediu um manifestante do Movimento Brasil Livre (MBL), mas está sendo punido com a sanção mais grave possível porque faz forte oposição ao Centrão. Já o Senado segura a votação de indicações para agências reguladoras porque o senador Davi Alcolumbre quer trocar alguns dos nomes escolhidos pelo governo por opções apadrinhadas por ele ou por outros senadores.

Em meio aos embates, Hugo Motta, tido por muitos colegas como um político moderado e hábil, enfrenta agora o primeiro grande teste de tensão em seu mandato. Ele passou a receber críticas até por uma questão menor, quando circulou nas redes sociais no último fim de semana um vídeo em que aparece bebendo um gole de uísque direto da garrafa durante uma festa junina, no interior da Paraíba, patrocinada pelo governo federal. Na verdade, pouco importa esse tipo de coisa, ainda mais quando ocorre fora do ambiente das sessões. O fundamental é que os congressistas canalizem seu poder e energia na direção do que importa para o país. Infelizmente, o impasse entre Legislativo e Executivo ocorre hoje mais por interesses corporativos e eleitorais e menos em torno do mérito das pautas urgentes e fundamentais.
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2025, edição nº 2950