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Haddad sofre revés com MP e enfrenta inédita fragilidade política

Devolução de medida provisória revela a forma mambembe com que o governo toma decisões de alta importância e atinge a credibilidade da equipe econômica

Por Daniel Pereira, Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 14 jun 2024, 11h27 - Publicado em 14 jun 2024, 06h00

Até aliados de Lula dizem que o governo é desarticulado politicamente, descoordenado na área administrativa e fértil em intrigas e disputas internas de poder. A derrubada de vetos presidenciais, por exemplo, tornou-se corriqueira no Congresso. Medidas prosaicas como um leilão de importação de arroz causam confusão, desgaste de imagem e até suspeita de favorecimento. Mesmo iniciativas consideradas prioritárias são decididas às vezes de maneira mambembe, quase amadora, algo surpreendente numa gestão chefiada pelo único brasileiro a conquistar três vezes a Presidência da República. Os exemplos de incompetência são muitos, mas o caso da medida provisória (MP) que restringia o uso de créditos de PIS/Cofins é emblemático. O texto foi editado sem que seus detalhes fossem apresentados à cúpula do Congresso e debatidos previamente com os setores da economia afetados pelas regras. Minado dentro do próprio governo, teve apenas sete dias de vida, até seu ponto principal ser anulado pelo comandante do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que, com a decisão, impôs um novo revés a Fernando Haddad. O ministro da Fazenda sempre experimentou certa solidão em sua campanha a favor do equilíbrio das contas públicas. A novidade é que agora ele também enfrenta um momento inédito de fragilidade política.

PELAS COSTAS - Lula: queixas, pressão e recuo sem consultar o ministro
PELAS COSTAS - Lula: queixas, pressão e recuo sem consultar o ministro (Buda Mendes/Getty Images)

A devolução da MP tem como pano de fundo a dubiedade do governo com relação ao ajuste fiscal, alimentada sobretudo por Lula, e até a rivalidade em torno de sua sucessão dentro do PT. A medida começou a ser estudada pela Fazenda depois de o governo fechar, no início de maio, um acordo com o Congresso para manter a desoneração da folha este ano e iniciar uma transição gradual para o fim do benefício a partir de 2025. Numa negociação intermediada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ficou estabelecido que Executivo e Legislativo trabalhariam juntos para encontrar uma fonte de compensação à desoneração, como determina a Lei de Responsabilidade Fiscal. A equipe de Haddad optou pela restrição ao uso de créditos de PIS/Cofins, apresentou a ideia a Lula e ministros importantes, como Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Rui Costa (Casa Civil), e, com a concordância de todos, passou a trabalhar na redação da MP. Questões de agenda, como a marcha dos prefeitos, levaram o governo a divulgar a medida apenas na terça-feira da semana passada, 4 de junho. Um dia antes, ela fora tema da reunião realizada pelo presidente com a sua coordenação política, da qual fazem parte os principais ministros e líderes do governo no Congresso.

RIVAL CASEIRO - Costa: o chefe da Casa Civil jurou que desconhecia o teor da MP
RIVAL CASEIRO – Costa: o chefe da Casa Civil jurou que desconhecia o teor da MP (Casa Civil//)

No encontro, prevaleceu a avaliação de que a MP enfrentaria resistência, como outras iniciativas adotadas pela equipe econômica, mas valia a pena apostar nela. O senador Rodrigo Pacheco foi avisado de que o ato seria baixado no dia seguinte, mas não recebeu uma cópia do texto. A sorte foi lançada, e a reação surpreendeu o governo. Dono do grupo Cosan, próximo de Lula e doador ao PT na última eleição, o empresário Rubens Ometto reclamou publicamente: “Do jeito que está, com o governo metendo a mão, querendo taxar tudo, não dá”. O ex-governador e ex-senador Blairo Mag­gi, maior produtor de soja do país, ligou para Lula e apresentou uma série de queixas. O presidente, então, ordenou que Haddad conversasse com ele. Assim foi feito. O ministro alegou a Maggi que exportadores, como o grupo de sua família, não seriam prejudicados, ao contrário da versão corrente. Entidades empresariais também estrilaram. Em viagem à China com uma missão oficial brasileira, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Ricardo Alban, ao saber do caso, pediu explicações a Rui Costa, que disse que não sabia de nada a respeito da tal MP. Não era verdade.

Rival de Haddad tanto na linha sucessória de Lula quanto nos debates sobre a política econômica, Rui Costa — que, entre outras coisas, pressiona pelo abrandamento das metas fiscais — participou de várias reuniões de preparação da medida provisória. Por estar em viagem, podia até não ter lido a íntegra do texto, mas sabia de sua essência. Nas negociações com o núcleo duro do governo, o chefe da Casa Civil havia pedido para que esperassem o seu retorno antes de a medida ser apresentada, mas acabou ignorado. Diante de tanta controvérsia, Lula aproveitou uma reunião da coordenação política, na segunda-feira 10, para tratar do assunto. Ele deu um prazo de 48 horas para que Haddad, Padilha e os líderes do governo no Congresso tentassem um acordo sobre a MP. A oportunidade estava dada, já que no dia seguinte, terça-feira 11, estava prevista uma reunião de Haddad com representantes da CNI e da Confederação Nacional da Agricultura. Deu tudo errado.

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SURPRESA - Padilha: tentativa de acordo com questão já resolvida
SURPRESA - Padilha: tentativa de acordo com questão já resolvida (Roque de Sá/Ag. Senado)

Sem avisar os seus negociadores, Lula se encontrou com Ricardo Alban no Palácio do Planalto antes da reunião de Haddad com as confederações. A conversa teria sido intermediada, segundo fontes do governo, por Rui Costa, o rival caseiro do ministro da Fazenda. Foi o ponto alto de uma monumental trapalhada. Ao sair da audiência, Alban deu uma entrevista dizendo que o presidente lhe confidenciara que a MP seria revogada. Essa iniciativa realmente já havia sido cogitada numa conversa entre Lula, Haddad e Rodrigo Pacheco, mas não havia decisão tomada nesse sentido. A fala de Alban pegou de surpresa Had­dad, Padilha e o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), que o aguardavam para a reunião na qual, esperavam os ministros, as resistências à MP seriam demovidas e um canal de negociação seria aberto. O grupo foi recebido por um ministro visivelmente contrariado, que não escondia a irritação.

“Pensei que vocês nem viriam. Se o presidente já resolveu, o que eu tenho que falar?”, disse Haddad. O ministro tinha tomado conhecimento da decisão de revogar a medida pela entrevista do representante da CNI, que explicou: “Você acha que eu ia dar uma informação dessa se não tivesse autorização expressa do presidente Lula?”. O mal-­estar era patente. Após a reunião, os ministros tentaram passar a limpo a história. Ouviram de Lula, conhecido por falar aquilo que a audiência quer ouvir, que ele não disse a Alban que a MP seria revogada, mas que essa era uma possibilidade se não houvesse acordo. Era tarde. Antes da sessão plenária do Senado, Rodrigo Pacheco avisou a Jaques Wagner que devolveria a parte central da MP, como pediam setores da economia, muitos deles presentes no Salão Azul do Congresso. O presidente do Senado alegou que a MP desrespeitava, entre outros pontos, o princípio da anterioridade, segundo o qual é proibida a cobrança de tributo antes de noventa dias da data de publicação da lei que o criou ou aumentou.

OPOSIÇÃO - Nogueira: “Governo precisa parar de criar problemas”
OPOSIÇÃO - Nogueira: “Governo precisa parar de criar problemas” (Waldemir Barreto/Ag. Senado)

Numa tentativa de salvar a MP, sem saber que já estava tudo encaminhado com o presidente, Haddad chegou a sugerir a edição de uma nova medida, que estipularia a entrada em vigor da restrição do uso de crédito de PIS/Cofins só três meses depois de sua publicação. De nada adiantou. Para amenizar a derrota, ficou acordado que alguns trechos seriam preservados, como o que garante mais transparência e segurança nos recursos federais, em meio à suspeita de fraudes envolvendo créditos tributários. “É claro que o Had­dad está preocupado. Ele achou uma saída para tapar um buraco. A saída não foi bem recebida, foi considerada ilegal pelo presidente do Congresso e voltou. Então, ele continua com o mesmo pepino na mão como o responsável pelas contas públicas”, disse a VEJA o senador Jaques Wagner. “Querem desoneração aqui, querem desoneração ali. Mas quem paga? Evidentemente que a parte do corpo que mais dói é o bolso. Toda vez que você vai mexer nos haveres de quem quer que seja, pessoa física ou jurídica, tem reação”, acrescentou. No Congresso, o presidente do PP, senador Ciro Nogueira, anunciou que o partido recorreu ao Supremo para tentar barrar a medida. “O governo precisa parar de criar problemas para o país”, disse o parlamentar.

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Derrotado no caso, o ministro da Fazenda declarou que não tem uma alternativa na manga. Uma compensação terá de ser encontrada para que a desoneração seja mantida em 2024. Não bastasse esse nó específico, Haddad não vive seus melhores dias no governo. No ano passado, ele conseguiu aprovar os principais pontos de sua agenda no Congresso, como o novo marco fiscal e a reforma tributária, ganhou o respeito da cúpula do Legislativo e afastou as suspeitas que corriam no mercado sobre a sua capacidade de resistir ao fogo amigo e à tentação de Lula de apostar na gastança como estratégia de atuação. Diante de tais feitos, o ministro consolidou, inclusive, a posição de favorito para suceder Lula dentro do PT. Este ano, no entanto, tem sido bem mais difícil para ele. Projetos apresentados pela Fazenda foram rejeitados pelos congressistas ou atenuados, o que é do jogo. Já Lula, Rui Costa e companhia reforçaram a pressão por mais gastos, viram as metas fiscais de 2025 e 2026 serem alargadas e, com a ajuda das correias de transmissão do petismo, passaram a sabotar qualquer debate destinado a conter a expansão das despesas obrigatórias da União.

REUNIÃO - Wagner: líder do governo no Senado negociou uma saída política para a crise
REUNIÃO - Wagner: líder do governo no Senado negociou uma saída política para a crise (Jonas Pereira/Ag. Senado)

Chamado certa vez por Lula de petista com cara de tucano, Haddad está cada vez mais sozinho em sua luta para desengessar o Orçamento e desarmar uma bomba fiscal que está prestes a explodir. A derrota no caso da MP do PIS/Cofins pode até atrapalhar seus planos de recompor a arrecadação, mas não é nem de longe o seu principal problema. O ministro lida com um apoio minguante no governo, e expoentes do PIB, para a alegria de certos setores petistas, já questionam sua capacidade de manter uma política econômica responsável — uma crítica injusta, apesar da mancada da MP. Há sinais de um ataque especulativo e até quadros assanhados para substituir Haddad na Fazenda, o que, aliás, seria um desastre. Dois dias depois da rejeição da MP, o presidente Lula, numa entrevista em Genebra, finalmente saiu em defesa do auxiliar: “Não tem nada com o Haddad, ele é extraordinário ministro, não sei qual é a pressão contra o Haddad”. A pressão é conhecida. Segundo um interlocutor, o ministro está um “pouco decepcionado”, mas não abalado. Teimoso e avesso a recuos, ele não pretende jogar a toalha e quer manter sua cruzada — mesmo que mais solitária a cada dia que passa.

Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897

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