Funcionária que denunciou fraude no governo é investigada pelo MP
Renata Mesquita D’Aguiar foi demitida após ser acusada de envolvimento com quadrilha que vendia testes superfaturados de Covid-19
A auditora do Tesouro Nacional Renata Mesquita D’Aguiar sempre sonhou em entrar no mundo da política. Quando teve a oportunidade de trabalhar na Câmara dos Deputados, passou a conviver com parlamentares e se tornou amiga de alguns deles. Filiada ao Progressistas, concorreu ao cargo de deputada distrital em 2018, mas acabou derrotada nas urnas. Nada que a desanimasse. Com a experiência eleitoral na bagagem, Renata traçou novas estratégias para conseguir ser eleita. Uma de suas prioridades era participar de um projeto de ponta de gestão pública, daqueles que envolvem fartura de recursos e garantem visibilidade. Em junho do ano passado, apareceu a oportunidade. Sob as bênçãos de caciques do Progressistas e do Republicanos, Renata foi nomeada diretora do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que tem orçamento anual de cerca de 50 bilhões de reais. Empossada, ela fez um pente-fino nas contas do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), descobriu uma fraude de mais de 1 bilhão de reais e denunciou o desfalque aos ministros da Educação e da Controladoria-Geral da União (CGU).
O começo foi promissor. O problema é que, depois disso, Renata trocou o papel de investigadora pelo de investigada. No último dia 3 de março, ela e o marido, o assessor parlamentar Fábio Gonçalves Campos, foram alvo da quarta fase da Operação Falso Negativo, responsável por esquadrinhar um esquema de venda de testes de Covid-19 superfaturados para a Secretaria de Saúde do Distrito Federal. O casal foi acordado pela Polícia Civil por ser suspeito de integrar uma quadrilha que teria desviado dinheiro público destinado ao combate da pandemia. Durante as buscas, os investigadores apreenderam mais de 280 000 reais em espécie no carro de Fábio e outros 50 000 reais em dólares e euros, além de joias, que pertenciam a Renata. Os dois negaram ter participação em qualquer irregularidade e alegaram que a grana em espécie tinha como origem a venda de casas populares e seria usada em negócios rurais. Não convenceram nem as autoridades policiais nem seus padrinhos políticos. Antes que o escândalo respingasse nos parlamentares responsáveis por sua indicação ao FNDE, a auditora foi exonerada. Seu marido também acabou demitido do gabinete do deputado federal João Carlos Bacelar (PL-BA).
Expoentes do chamado Centrão, Progressistas, Republicanos e PL vivem às voltas com acusações de corrupção e geralmente são benevolentes com correligionários em apuros. Essa conduta-padrão, no entanto, não valeu para Renata e o marido dela, considerados peças-chave no esquema investigado pelo Ministério Público do Distrito Federal. A apuração mostra que Fábio utilizou uma empresa da Bahia para vender, sem licitação, testes de Covid-19 superfaturados à Secretaria de Saúde do DF, que na época era comandada por Francisco Araújo, padrinho de casamento do casal. O sobrepreço estimado foi de 195,78% — que gerou um prejuízo aos cofres públicos de 5 milhões de reais. Os promotores acusam a auditora de participar do esquema porque ela nomeou para o FNDE um dos integrantes da organização criminosa que teria ajudado a superfaturar o contrato da Secretaria de Saúde. A nomeação seria uma espécie de “retribuição” aos ganhos que o marido dela obteve ao vender os testes de Covid-19. Procurada por VEJA, Renata jurou inocência e apresentou outra versão para o caso. Ela disse que foi demitida do FNDE depois de alertar o presidente do fundo, Marcelo Lopes da Ponte, sobre uma irregularidade no repasse de 150 milhões de reais a uma instituição de ensino superior de São Paulo.
De acordo com Renata, o pagamento foi autorizado por um diretor da área de tecnologia do FNDE. Quando tomou conhecimento do fato, ela abortou a operação e pediu providências ao presidente do órgão. Ex-chefe de gabinete do senador Ciro Nogueira, presidente do Progressistas, Lopes da Ponte, segundo ela, teria abafado o caso porque a falcatrua teria como beneficiários finais importantes caciques políticos. “Fiquei revoltada com o presidente do FNDE. Falei: ‘Presidente, isso aqui é muito sério’. Mas o presidente falou: ‘Não vamos denunciar’”, contou Renata. “Se eu denunciasse, ia prejudicar os presidentes do PP e do PL”, acrescentou ela, relatando o que teria ouvido de seu antigo superior. Procurado, o presidente do FNDE não quis se manifestar. Em nota, sua assessoria informou que “os processos judiciais relacionados a esses pagamentos são acompanhados pela Procuradoria Federal junto ao FNDE”. Por todo o país, esquemas de corrupção avançam no mesmo ritmo da escalada da pandemia. Já houve dezenas de operações da Polícia Federal sobre contratos emergenciais de compra em vários estados. A capital do país tem sido terreno fértil para investigações.
Em fevereiro, uma reportagem de VEJA mostrou que a Precisa Comercialização de Medicamentos — empresa responsável por vender ao Ministério da Saúde, por 1,6 bilhão de reais, 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin — também é investigada por fornecer testes de Covid-19 superfaturados à Secretaria de Saúde do DF. O dono da Precisa se chama Francisco Maximiano e é um especialista em contratos suspeitos com a administração pública. Outra de suas empresas, a Global Gestão em Saúde, foi alvo de uma ação de improbidade administrativa por ter recebido, em meados de 2017, um pagamento indevido de 20 milhões de reais do Ministério da Saúde, que era chefiado pelo atual líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros, filiado ao mesmo Progressistas da auditora Renata e do senador Ciro Nogueira, o donatário do FNDE. Segundo o Ministério Público, a Global recebeu recursos antecipadamente para fornecer medicamentos para o tratamento de doenças raras, que não chegaram a ser entregues. Em razão disso, catorze pacientes morreram. Aos investigadores, um servidor da pasta disse que foi pressionado por um diretor — indicado pelo Progressistas e que mencionava “o nome do ministro” — para liberar o pagamento de forma irregular. Maximiano e Barros negam as acusações. O fato é que a pandemia atiçou o apetite de algumas espécies que se nutrem da sangria dos cofres públicos.
Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729