Exclusivo: As cartas escritas por Adélio na prisão sobre Bolsonaro
Nos textos obtidos por VEJA, o autor da facada no presidente o chama de anticristo e enxerga conspirações por todos os lados
A maçonaria domina a Justiça, desvia dinheiro público para se manter e, por meio de seus ritos e da prática de hipnose, controla as emoções das pessoas. O chá do Santo Daime revigora o corpo dos adeptos dessa sociedade secreta, enquanto psiquiatras e agentes penitenciários integrantes do grupo não aceitam que se fale mal dele dentro dos presídios e cancelam até o banho de sol de quem se atreve a fazer isso. Já o presidente Jair Bolsonaro “é o anticristo, aprecia e usa reciclado em tudo”. Sobram disparos também em direção aos haitianos, acusados de tirar os empregos dos brasileiros, mas mesmo assim o ex-presidente Lula “é um leal defensor deste pessoal e até construiria casas gratuitamente” para eles.
Essa série de pensamentos desconexos e desvairados saiu da cabeça perturbada de Adélio Bispo, o autor do atentado a faca contra o então candidato Jair Bolsonaro, ocorrido em setembro de 2018 na cidade mineira de Juiz de Fora. A reportagem de VEJA teve acesso a 23 cartas escritas por Adélio no segundo semestre de 2021 dentro da penitenciária federal de Campo Grande, onde ele cumpre uma medida de segurança, sanção penal imposta a um réu considerado inimputável. As cartas têm uma dupla importância. Reforçam a situação de fragilidade mental do homem que tentou matar o presidente e também fortalecem as conclusões da Polícia Federal que mostraram que Adélio agiu sozinho em 2018, motivado por suas ideias equivocadas — à época, ele disse ter ouvido uma ordem divina.
Com a tentativa de assassinato, ele entrou para a história política do país e influenciou os rumos da eleição daquele ano. Em maio de 2019, a Justiça decidiu, com base em laudos médicos, que Adélio tem doença mental e determinou que ele cumprisse a medida de segurança na penitenciária federal na capital de Mato Grosso do Sul, na qual ele permanece até hoje por falta de vaga em uma instituição psiquiátrica adequada para recebê-lo em Minas Gerais, local do atentado e onde ele tem familiares. Adélio está prestes a ser submetido a uma reavaliação de seu quadro clínico, a ser realizada por uma junta médica composta de psiquiatras indicados por sua defesa e pelo juízo da 5ª Vara Federal em Campo Grande, que acompanha o caso.
Neste mês, venceu o prazo de três anos estipulado pela Justiça para que novos exames indiquem se o autor da facada em Bolsonaro deve continuar internado na penitenciária de segurança máxima ou se pode progredir para um tratamento ambulatorial, medida de segurança menos gravosa que, em tese, pode levá-lo à liberdade. “Para mim, ele tem de ficar onde está”, diz o advogado Zanone Manuel de Oliveira Júnior, que atuou na defesa de Adélio e hoje é seu curador. Na visão do advogado, o ambiente de polarização política, às vésperas da eleição, prejudicará a saúde e a segurança de Adélio se ele sair do cárcere.
O conjunto de cartas escritas a que VEJA teve acesso fortalece a percepção de uma pessoa doentia. Para analisar esses documentos, a reportagem encomendou um exame grafoscópico ao perito em ciências forenses e professor Reginaldo Tirotti, que comparou as cartas obtidas por VEJA com peças de processos judiciais escritas a mão por Adélio e concluiu pela autenticidade do material. Também coube à equipe do perito tornar os escritos inteligíveis. Na sequência, os documentos foram submetidos à análise do psiquiatra forense Guido Palomba, que já elaborou mais de 15 000 pareceres e laudos para processos que tramitam nos tribunais de São Paulo. A conclusão, segundo o médico, é inequívoca: “Diante da clareza clínica, não se põe a menor dúvida de que o autor dos escritos está em franca ruptura com a realidade. Romper com a realidade significa, obrigatoriamente, do ponto de vista psiquiátrico-forense, doença mental, no caso, estado psicótico grave, cujas características indicam, com segurança, tratar-se de esquizofrenia paranoide”.
Os textos, de acordo com o especialista, estão repletos de elementos psicopatológicos que demonstram grave distúrbio do pensamento, tanto do curso das ideias (o que é tecnicamente chamado de desagregação) quanto de seu conteúdo (persecutoriedade). Essa última característica se manifesta na forma de delírio de perseguição, como no trecho em que Adélio diz que a maçonaria “pode controlar emoções de pessoas com ‘Reaas’ ou algo equivalente como hipnose ou algo mais que isso”. Para Palomba, embora existam formas mais brandas de esquizofrenia paranoide, sujeitas a certo controle, esse não é o caso de Adélio, cujos escritos revelam estado delirante e alto grau de desagregação do curso do pensamento, algo típico de casos severos da doença.
Dois inquéritos já finalizados pela Polícia Federal concluíram que o atentado cometido por Adélio em 2018 não teve mandantes nem cúmplices — um tema que é uma obsessão de Bolsonaro e, inclusive, foi uma das razões de desavença entre ele e seu ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que comandava a PF à época das investigações. Para o presidente e seus aliados, a corporação não se esforçou o suficiente para esclarecer o caso. Em novembro passado, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), após idas e vindas, liberou a última frente de investigação possível sobre o atentado, autorizando a quebra do sigilo do advogado Oliveira Júnior, para que seu celular seja vasculhado. A decisão é controversa porque a lei garante a proteção do sigilo dos defensores. A Ordem dos Advogados do Brasil, que teme que a medida gere um precedente perigoso para a categoria, informou que aguarda a publicação do acórdão do TRF1 para recorrer. Enquanto isso, o caso está numa espécie de limbo judicial, o que já é suficiente para dar munição à tropa bolsonarista nas redes sociais.
Exemplo disso ocorreu em fevereiro, quando o deputado Junio Amaral (PL-MG), que tem mais de 158 000 seguidores no Twitter, compartilhou uma notícia falsa de que Adélio havia dado um novo depoimento confessando que a facada teria sido encomendada pela campanha de Fernando Haddad (PT) em 2018. Hoje, o parlamentar jura que foi vítima de fake news, mas continua sustentando a tese de que a verdade ainda não veio à tona. “Acho que há conspiração de alguns membros que participaram da investigação com interesse de dar guarida a esse assassino”, diz. Para investigadores, no entanto, no que diz respeito ao advogado de Adélio, a realidade é bem mais simples: Oliveira Júnior teria se oferecido para advogar de graça com o objetivo de pegar carona nos holofotes da cobertura sobre o caso. O advogado, por sua vez, mantém a versão que vem dando desde o início: a de que ganhou 5 000 reais de uma pessoa que não se identificou e nunca mais voltou. “Acho que era algum evangélico da região dele, de Montes Claros”, desconversa.
Na atual campanha presidencial, o “fantasma” de Adélio e as teorias de conspiração geradas pelo caso representam uma espécie de arma dos bolsonaristas para mudar de assunto nos instantes mais críticos. Um levantamento da FGV-DAPP (Diretoria de Análise de Políticas Públicas) feito a pedido de VEJA mostra que os picos de menção a Adélio no Twitter costumam coincidir com momentos estratégicos. De abril para cá, houve três picos. O mais recente foi em 10 de junho, na semana do desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips na Amazônia. Nessa data, perfis bolsonaristas publicaram 7 300 tuítes com informações falsas que reforçam a tese de um mandante para a facada. Considerando as duas semanas em que o caso de Bruno e Dom dominou o noticiário, a média de tuítes sobre a facada foi de 2 770 por dia, número consideravelmente maior que nos dois meses anteriores, quando a média era de 1 430 tuítes diários. Os posts mais compartilhados vieram de contas anônimas na rede social. Outro pico (com 11 600 tuítes) foi em maio, quando se noticiou que Adélio passaria por nova perícia médica. A publicação mais compartilhada foi a do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que reclamou de “quem já quer soltá-lo”. O filho Zero Um do presidente, aliás, voltou a evocar a sombra de Adélio no último domingo, 19, ao divulgar que um homem armado com faca foi preso pela Polícia Militar do Amazonas durante a motociata de Bolsonaro em Manaus na véspera. A Secretaria de Segurança do estado, porém, afirmou que não existe registro dessa prisão.
Enquanto assombra as redes sociais, Adélio continua morando na cela 14 da Ala Delta da penitenciária federal de Campo Grande, onde chegou em 8 de setembro de 2018, dois dias depois do atentado. Passa a maior parte do dia sozinho. O local tem cama, sanitário, pia, mesa e cadeira, todos de alvenaria. O envio de objetos e utensílios pelos Correios pela família, como ocorre em presídios estaduais, não é permitido. A exceção é uma revista e um livro por semana, que têm o conteúdo analisado. Um prontuário, ao qual VEJA teve acesso, mostra que Adélio recebeu 149 atendimentos médicos e terapêuticos de 2018 a maio de 2020. No período, foi visitado por familiares cinco vezes e teve direito a duas sessões de filmes: Minha Mãe É Uma Peça 2, três dias antes da posse de Bolsonaro, e Minha Super Ex-Namorada, dois meses depois. Quando pode deixar o cubículo de 7 metros quadrados, por duas horas diárias, Adélio (e os demais detentos) precisa ficar de costas para a porta e cruzar os braços para trás, para ser algemado e levado até o pátio. No banho de sol de cada ala há no máximo outros três presos por vez. Em um desses “passeios”, em maio de 2020, Adélio teve um surto psicótico, começou a gritar e precisou ser encaminhado para a enfermaria, onde permaneceu por cinco dias. Cinco meses antes, xingou dois agentes, chutou a porta e jogou roupas no chão. Como punição, ficou dez dias na solitária.
Em outra encrenca, contou que foi xingado por um agente, que teria dito que “quem vota no Lula é vagabundo e que Bolsonaro é um homem de Deus”. Em suas cartas, relatou assim as agruras na prisão: “Maçons querendo confusão, se atrevem a vir aqui, me algema (sic) e leva para um quarto escuro e sem ventilação e com pouca claridade e ali me deixam com eles. O mundo tem buscado respostas e meus advogados os protegem e eu to aqui por causa deles e os promotores que impediram a entrevista são maçons, assim como o Dalhanhol (Deltan Dallagnol)”. Como demonstram esses documentos, pior cárcere para Adélio é mesmo a mente perturbada que deve aprisioná-lo para sempre ao lado de tantos demônios.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795