Dos indígenas aos sem-terra, grupos alinhados à esquerda pressionam Lula
Cenário de descontentamento com o governo traz sinais de alerta para o presidente e para o PT
Em abril do ano passado, a organização do Acampamento Terra Livre, manifestação de grupos indígenas que ocorre todos os anos, convidou Lula para participar do evento em Brasília. O clima era de absoluta lua de mel. O presidente, que tinha assumido o governo havia apenas quatro meses, comprometeu-se a acelerar a demarcação de áreas, anunciou a liberação de verbas, lembrou que havia criado o Ministério dos Povos Indígenas e nomeado para comandá-lo a ativista Sonia Guajajara — uma demonstração aparentemente inequívoca de apoio à causa. Um ano depois, os indígenas reclamam que demarcações prometidas não saíram do papel, que os recursos liberados foram insuficientes e que o ministério está esvaziado. Para deixar explícita a insatisfação, dessa vez decidiram não convidar Lula e, sim, eles mesmos irem ao Palácio do Planalto apresentar a pauta de reivindicações. “O presidente tinha se comprometido a demarcar as terras nos primeiros 100 dias e não fez. Isso gerou um grande embaraço”, diz Paulo Tupiniquim, um dos organizadores.
Para as lideranças do grupo, o governo optou por desacelerar os processos de demarcação para tentar se aproximar do agronegócio. A insatisfação aumentou ainda mais depois da aprovação do marco temporal, que restringe a demarcação a propriedades comprovadamente ocupadas pelos indígenas até 1988. Esse trecho da lei chegou a ser vetado por Lula, mas acabou revogado pelo Congresso. Teria faltado empenho do governo e do presidente para tentar evitar esse desfecho. “Nós estamos vendo um alinhamento muito próximo dele com o agronegócio, nossos inimigos históricos”, disse Dinamam Tuxá, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, referindo-se à postura de Lula. Na terça, 23, cerca de 8 000 indígenas caminharam em direção à Praça dos Três Poderes. Um forte esquema de segurança manteve o grupo a distância das sedes do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto.
Esse cenário de descontentamento com o governo atinge outros setores tradicionalmente ligados à esquerda e ao PT. O MST, que já foi até instado por Lula no passado a colocar o seu “exército” na rua em defesa do governo, emite sinais de agastamento. Nos dois primeiros mandatos do presidente, os sem-terra eram usados como arma para constranger grandes proprietários de terras, empresas ligadas ao agronegócio e adversários políticos. Hoje, enfrentando circunstâncias bem diferentes de antes, o presidente precisa se aproximar dos ruralistas por necessidade política. Para construir pontes, Lula foi aconselhado a colocar o pé no freio na reforma agrária e evitar conflitos no campo. Para tentar compensar, cedeu espaços e deu cargos importantes ao movimento, além de anunciar um ambicioso programa, cuja meta seria assentar 295 000 famílias até 2026. Nada indica que isso vai aplacar os ânimos do MST.
Apenas nos primeiros vinte dias de abril, os sem-terra invadiram 32 propriedades em quinze estados. Os dirigentes do movimento dizem que não estão convencidos do empenho do governo em cumprir as promessas. Eles se queixam de que foram assentadas até o momento apenas 1 400 famílias, contingente considerado pequeno demais, e dos cortes orçamentários. O MST calcula que seriam necessários ao menos 2,8 bilhões de reais para atingir a meta em 2024, mas o Incra, órgão responsável pelo planejamento e execução dos projetos, conta com apenas 567 milhões para tocar o programa — um quinto do valor estimado. “Por mais que haja certo esforço do governo em sinalizar a retomada da reforma agrária, isso ainda não aconteceu. Há um passivo que não foi ainda sequer mexido. É fundamental que possamos seguir mobilizados e organizados para mostrar que é uma demanda urgente e necessária”, ressaltou Ceres Hadich, dirigente nacional do MST, no site da entidade.
Outro foco de problemas para o governo se encontra no funcionalismo público. Em tempos de desequilíbrio fiscal, reajustes salariais não encontram espaço no orçamento. Algumas categorias estão pressionando o governo. Os técnico-administrativos, por exemplo, ameaçam entrar em greve caso não sejam concedidos reajustes que variam de 22% a 34%. Em muitas universidades federais, a turma já cruzou os braços. O Ministério da Gestão, comandado pela petista Esther Dweck, também já informou que não haverá aumentos neste ano, o que foi considerado pelos representantes da categoria como uma postura “intransigente” e “decepcionante”. Sem acordo, ameaçam uma paralisação que pode atingir todos os níveis da administração pública. “O que o governo tem feito é colocar a gente sempre no final da fila. Os servidores estão há sete anos com a remuneração congelada. A nossa paciência acabou”, diz Sérgio Ronaldo da Silva, secretário-geral da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal, entidade que representa 80% dos funcionários do Executivo.
Para um governo do PT, partido que nasceu no berço do sindicalismo, nada mais constrangedor que esse tipo de cobrança. Afinal, foi nesse ambiente que Lula, um ex-metalúrgico, construiu sua carreira política. Por questões de ordem prática, a ameaça de uma greve geral dos servidores públicos tem preocupado o governo. “Nós estamos preparando aumento de salário para todas as carreiras. Nem sempre é tudo que a pessoa pede. Muitas vezes é aquilo que a gente pode dar. E nós vamos negociar com todas as categorias. Eu quero até aproveitar para dizer que ninguém será punido neste país por fazer uma greve”, disse o presidente na terça, 23. O Ministério da Gestão designou o secretário de Relações do Trabalho, José Lopez Feijóo, para tentar resolver o impasse. Feijóo já foi presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e secretário-geral da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Em uma das primeiras reuniões, ele condicionou o avanço das negociações à não realização de greves ou qualquer tipo de paralisação. A postura foi classificada pelos sindicalistas como autoritária e inadmissível.
O fato é que as próprias centrais sindicais, inclusive aquelas historicamente ligadas ao PT, demonstram certa irritação com o governo. Desde a volta de Lula ao Planalto, elas se articulam para tentar recriar o imposto sindical. A contribuição compulsória, abolida pela reforma trabalhista, tirou 3 bilhões de reais por ano dos cofres das entidades. Na campanha eleitoral, Lula se comprometeu a criar um mecanismo que compensasse a perda de arrecadação. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, ex-sindicalista, chegou até a elaborar uma minuta para a criação do chamado “financiamento solidário e democrático”, um nome mais bonito para definir a volta do tributo. Rejeitada pelos patrões e pelos congressistas, a proposta não avançou. “Seguindo a orientação do Lula, estamos há um ano negociando com a área empresarial, mas falta empenho”, disse Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT).“Também é preciso cobrar do governo a correção da tabela do imposto de renda e gritar contra a carestia, que prejudica os mais pobres”, ressalta Miguel Torres, presidente da Força Sindical. Essas e outras reivindicações serão apresentadas no ato que vai celebrar o Dia do Trabalho, 1º de maio, em São Paulo. Lula foi convidado, mas ainda não confirmou presença.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890