Discussão de projeto contra facções na Câmara vira cabo de guerra entre direita e esquerda
Motta adiou a votação para terça-feira 18, o que deve prolongar a batalha política em torno de um tema vital para o país
Os tiros entre policiais e bandidos nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, em 28 de outubro, impactaram a opinião pública e deflagraram outro tiroteio intenso, desta vez político. A escolha do deputado Guilherme Derrite (PP), secretário licenciado da Segurança Pública do governador Tarcísio de Freitas, em São Paulo, para ser o relator do projeto de lei da gestão Lula contra as facções deflagrou uma disputa barulhenta pelo protagonismo no combate ao crime com vistas à guerra eleitoral que já se avizinha. Em pouco menos de uma semana, o ex-chefe da Rota, uma das apostas da direita para 2026, apresentou quatro relatórios diferentes em meio ao chumbo pesado do governo e seus aliados, mas não conseguiu acordo para levar sua versão adiante. Pressionado, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), adiou a votação para terça-feira 18, o que deve prolongar a batalha política em torno de um tema vital para o país.
A disputa pelo protagonismo ficou evidente nos últimos dias. O projeto do Executivo, que o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, batizou de “PL Antifacção”, apostava na tipificação de organização criminosa, no endurecimento penal, em instrumentos de sequestro de bens, no monitoramento de chefes de facção nos presídios e em um banco de dados nacional, além, claro, de reforçar o papel da União. Derrite manteve boa parte do projeto ou fez alterações pontuais, mas duas mudanças desagradaram ao governo: a classificação das facções como terroristas e a redução das atribuições da Polícia Federal — em ambas, acabou recuando. Também mudou a tipificação penal para criar o crime de domínio social estruturado (quando um grupo criminoso impõe suas “leis” em um território) e aumentou as penas de prisão para até quarenta anos. Além disso, rebatizou o PL para Marco Legal do Combate ao Crime Organizado Ultraviolento. “É um projeto muito discutido, muito trabalhoso, e, de repente, nós fomos surpreendidos com um relatório que foi feito em 24 horas. Em 48 horas, foi feito outro. E com mais outras 24 horas, será apresentado um terceiro”, criticou Lewandowski, que integrou com a ministra Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais) e lideranças do PT na Câmara a tropa de choque contra Derrite.
A bandeira da segurança passou, de fato, a ter um peso muito maior para o embate político. Pesquisa Genial/Quaest divulgada na última semana mostrou que chegou a 38% a taxa de brasileiros que apontam a criminalidade como a principal preocupação, mais que o dobro do verificado há um ano (veja o quadro). A sondagem também mostrou que endurecer o tratamento aos criminosos tem amplo apoio da população: 46% defendem leis mais rígidas, penas maiores e menos criminosos soltos pela Justiça.
A celeuma em torno do PL Antifacção é mais um sintoma da profunda contaminação ideológica da pauta. “A partidarização da segurança esvazia o debate público e leva o país a insistir em uma perspectiva populista, espetacularizada, que não resolve o problema”, diz Rodrigo Azevedo, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e docente da PUCRS. A insegurança generalizada, no entanto — 19% da população diz conviver com facções e milícias no país, segundo o Datafolha —, gera terreno fértil para prosperar o discurso linha-dura feito pela direita. Na outra ponta, políticos de esquerda se veem presos à histórica dificuldade entre equilibrar o pulso firme contra a criminalidade e garantir proteção aos direitos humanos — como resultado disso, em geral, colhem piores resultados nessa área. “Enquanto a direita reafirma sua velha política repressiva como bandeira eleitoral, a esquerda não amadureceu novas soluções”, avalia José Álvaro Moisés, cientista político da USP.
As políticas baseadas apenas no endurecimento da repressão, em que pese o forte apelo disso junto ao eleitorado, não bastam para solucionar a crise. Os projetos em discussão no Congresso avançam em vários pontos, mas não abordam gargalos importantes no combate às facções, como o sucateamento das capacidades de investigação da Polícia Civil, a falta de fiscalização em contratos públicos e fintechs que lavam dinheiro para o tráfico e o domínio do crime organizado sobre o sistema prisional. “Enfrentar a criminalidade com eficiência exige inteligência policial, regulação de setores e cooperação entre investigadores federais e estaduais, mas são ações menos visíveis”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. É preciso ainda abordar a falta de recursos do Ministério Público para investigar chefes de organizações criminosas, sustentar acusações e mantê-los na cadeia. “É urgente ampliar o corpo técnico do MP com promotores especializados e peritos capazes de rastrear o dinheiro até os grandes líderes do tráfico. Não se faz Justiça sem investigação de qualidade”, diz Fauzi Choukr, promotor aposentado do MP-SP e consultor jurídico. Delegado aposentado da PF e colunista de VEJA, Jorge Pontes ressalta que agentes federais não podem ter seu papel reduzido, pois são fundamentais quando há envolvimento de policiais estaduais na malha das facções. “Não há espaço para conflito ideológico no enfrentamento às facções. O crime é uma realidade objetiva e exige integração entre PF e polícias locais, não a disputa por protagonismo”, diz.
A ascensão do tema da segurança pública na pauta eleitoral não só pressiona o governo Lula, que pouco avançou nessa área nos últimos anos, como expõe outros representantes da esquerda em 2026. Os dois maiores estados governados pelo PT, Bahia e Ceará, são o segundo e o terceiro mais violentos do país (atrás do Amapá). Na Bahia, governada pelo PT há cinco mandatos, a situação só tem escalado. No último dia 5, causou comoção a morte de Yasmin Sacramento Damascena, 12 anos, que brincava na porta de casa quando foi baleada num tiroteio entre bandidos em Salvador. “É muito triste começar o dia com uma notícia como essa”, postou o governador Jerônimo Rodrigues, enquanto prometia “firmeza e inteligência para enfrentar as facções criminosas”. No Ceará, entre agosto e novembro, a polícia prendeu 42 suspeitos de promover deslocamentos forçados de moradores, um fenômeno crescente no estado. A pressão pela alta da violência ajudou a modular até o discurso do governador Elmano de Freitas (PT), como ao comentar uma recente operação que matou sete suspeitos do Comando Vermelho no Ceará. “Não temos uma pessoa de bem, inocente, que tenha sido alvejada. Aqueles que resolveram enfrentar a polícia tiveram a resposta à altura”, disse. Ironicamente, é o mesmo argumento utilizado pelo governador do Rio, Cláudio Castro, em resposta às críticas que vem recebendo do PT de Elmano pelo saldo da recente megaoperação no estado.
Enquanto políticos de esquerda enfrentam dificuldades na segurança pública, seus pares de direita tentam capitalizar o momento. Ronaldo Caiado, pré-candidato a presidente, por exemplo, reuniu policiais militares de 21 estados no último dia 7 e criticou quem não tem pulso para fazer jogo duro contra bandidos. “O Estado do crime não pode existir”, disse. Na terça, ele e mais Romeu Zema (MG), Jorginho Mello (SC) e Cláudio Castro (RJ), que criaram o “Consórcio do Paz” após a ação no Rio, foram até Hugo Motta pedir mais tempo para discutir o projeto contra facções — o intuito, claro, é influenciar o formato final para ficar mais parecido com o que defende a direita. Em meio à guerra política, o cidadão, acuado, só quer soluções, independente de serem do governo ou da oposição. O que não dá mais é seguir convivendo com o estado de insegurança pública que toma conta do país.
Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2025, edição nº 2970
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