Discreto, Gonet vem mostrando firmeza no desafio por reviravolta na PGR
Com quatro meses de mandato, ele conduz o órgão longe do ativismo dos tempos de Lava-Jato e da leniência de seu antecessor, Augusto Aras
Um ano antes de a Constituição de 1988 ser promulgada, um jovem carioca de 26 anos, que já acumulava no currículo o cargo de promotor de Justiça no Distrito Federal, passou em primeiro lugar no 10º concurso de procuradores da República. Aquela não era uma turma qualquer. Logo depois dele, na segunda posição, estava Raquel Dodge, que seria escolhida por Michel Temer para ocupar a cadeira de procuradora-geral da República em 2017. Na mesma turma, havia um rapaz baiano chamado Antonio, que trinta anos mais tarde ficaria conhecido pelo restante de seu nome, Augusto Aras. Desde dezembro passado, o jovem carioca desse mesmo grupo, Paulo Gustavo Gonet Branco, ocupa a cadeira que foi de Dodge e de Aras. E a sua missão, que não é das mais fáceis, passa pela necessidade de dar uma reviravolta de rumos e de perfil na Procuradoria-Geral da República (PGR), o mais importante órgão do Ministério Público brasileiro e instituição central para a vida democrática do país.
Uma das tarefas prioritárias de Gonet é devolver à PGR a independência e a credibilidade que foram se esvaindo nos últimos anos, por razões distintas, mas complementares. Primeiro, foi o excesso de ativismo dos anos da Lava-Jato, quando a atuação do órgão comandado por Rodrigo Janot pode ser resumida por uma de suas frases mais emblemáticas: “Enquanto houver bambu, vai ter flecha”. Era o espírito da época do Ministério Público Federal, que denunciou centenas de políticos e levou à prisão dois ex-presidentes: Michel Temer e Luiz Inácio Lula da Silva. Depois da passagem discreta de Dodge, a PGR adernou para o outro lado: o da leniência, da qual Aras foi acusado com frequência por não levar adiante investigações contra políticos, em especial contra Jair Bolsonaro, acossado pela calamitosa condução da pandemia de covid-19 e pelos constantes ataques à democracia.
Em pouco mais de quatro meses à frente do cargo, Gonet parece que vem dando conta do desafio. O maior exemplo da nova postura de independência, sem perder a firmeza, está sendo dada nas questões envolvendo Jair Bolsonaro e seus aliados, personagens de todas as investigações em andamento com potencial para promover alguma combustão política. No inquérito que apura as fraudes nos cartões de vacinação do ex-presidente e de sua filha, Laura, Gonet contrariou a PF. Após a investigação, que teve diligências aprovadas pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, a PF indiciou o ex-presidente pelo esquema.
Na hora de se pronunciar sobre o caso, Gonet discordou da PF, pedindo a reabertura da investigação, acesso completo às interceptações telefônicas feitas pela polícia e a resposta do Departamento de Justiça dos EUA para saber se o indiciado tentou entrar no país usando o documento falso. A decisão surpreendeu boa parte do mundo político e jurídico. “Foi um grito de independência”, afirmou a VEJA um dos assessores mais próximos a Bolsonaro, referindo-se ao fato de o atual procurador-geral ter chegado ao cargo com a bênção do próprio Moraes. O ministro do STF concordou com a decisão de aprofundar a investigação. Na corrida à PGR, Gonet contou ainda com o apoio do decano Gilmar Mendes. O novo PGR também não viu crime na permanência por dois dias de Bolsonaro na Embaixada da Hungria logo após ter sido alvo de ação de busca da PF e confisco de seu passaporte. Por outro lado, opinou pela improcedência da tentativa do capitão de anular no STF a inelegibilidade decretada pelo Tribunal Superior Eleitoral e foi a favor de todas as diligências pedidas pelo ministro Alexandre de Moraes nas investigações sobre a tentativa de golpe. Também se reuniu com senadores da CPMI do 8 de Janeiro, prometeu que iria cuidar pessoalmente do caso e disse que pretende revisitar o relatório da CPI da Pandemia, que também mira Bolsonaro e foi mandado para a gaveta por Aras.
A mesma postura tem sido adotada em relação aos “peixes menores” do bolsonarismo. Gonet foi contra, por exemplo, apreender o passaporte do cacique do PL, Valdemar Costa Neto. Também rejeitou incluir uma assessora do deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) como alvo de busca e apreensão. Nos dois casos, Moraes discordou das posições, mas as divergências ficaram longe de sinalizar qualquer indício de crise. A independência de Gonet também se manifestou em decisões como a de manter a prisão do ex-assessor da Presidência Filipe Martins, detido sob a acusação de ter deixado o país ilegalmente em 2022, mesmo diante da ausência de registros disso. Ele ainda fez da deputada Carla Zambelli (PL-SP) a primeira bolsonarista denunciada na sua gestão, pelos crimes de invasão de sistema judicial e inclusão de um falso mandado de prisão contra Moraes, em parceria com o hacker Walter Delgatti Neto.
Em paralelo, a relação com o Supremo ganhou outro status com Gonet. Durante a gestão de Aras, Moraes chegou a determinar operações sem ouvir a PGR, o que provocou a irritação de Aras, ignorada pela Corte. O bom trânsito com os magistrados fortalece o propósito do PGR de recuperar o espaço, o prestígio e a credibilidade da instituição no Supremo. No fim de abril, Gonet esteve em Londres no 1º Fórum Jurídico Brasil de Ideias ao lado de Gilmar, Moraes, Toffoli, Ricardo Lewandowski (ministro da Justiça), Jorge Messias (AGU), Andrei Rodrigues (diretor da PF) e outras autoridades federais. No dia 10 do mesmo mês, recebeu com Flávio Dino e Cristiano Zanin uma condecoração da Justiça Militar.
Embora construa pontes com o STF e outros agentes públicos do direito em Brasília, Gonet é um procurador avesso aos holofotes. A discrição é perceptível em suas intervenções na Corte e em seus despachos, que usam de linguagem técnica e quase nenhum adjetivo — o que reforça o perfil parecerista e autocontido que sempre se atribuiu a ele. Lula, aliás, demorou para escolher Gonet, flertou com outras possibilidades até os últimos minutos e rechaçou a lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República, tradição criada por ele mesmo no primeiro mandato. A PGR passou mais de dois meses nas mãos da interina, Elizeta Ramos, até o petista cravar sua escolha, preterindo Antonio Carlos Bigonha e Aurélio Virgílio Veiga Rios, com perfis mais ativistas e progressistas.
Evidentemente, há ainda várias incógnitas sobre a atuação de Gonet. A principal delas é exatamente em relação a Lula. Nos bastidores, permanece entre os governistas uma espécie de “apreensão”. Apesar de ele ter demonstrado, em linhas gerais, alinhamento a princípios caros como a democracia, a “lealdade” a Lula ainda não foi testada. Até o momento, a PGR não tem sobre a mesa nenhuma investigação, acusação ou processo importante envolvendo o governo. Isso se explica, em parte, pelo perfil da oposição, que não tem o hábito de judicializar os temas, ao contrário do que faziam partidos de esquerda como PT, PSOL e Rede, que inundavam o Supremo nos tempos de Bolsonaro.
Há ainda alguma dúvida sobre como ele vai se comportar em relação à Lava-Jato. Um raro exemplo foi ter recorrido contra a decisão do ministro Dias Toffoli de suspender o pagamento dos acordos de leniência feitos pela Odebrecht — Gonet o fez usando o argumento de que a medida causa prejuízo aos cofres públicos. É uma questão de tempo até que esteja em suas mãos o inquérito que investiga Sergio Moro pela suposta condução ilícita de acordos de delação. Outra dúvida envolve as pautas de costumes. Em 2004, ele publicou um artigo contra o aborto, já disse que não é contra cotas raciais, mas fez ressalvas, e não tem opinião clara sobre a descriminalização das drogas — por ora, não teve de opinar sobre nenhum desses temas.
O Ministério Público foi criado nos anos 1950, mas por décadas foi pouco relevante. Tudo mudou a partir da Constituição de 1988, que deu ao órgão poder para ser guardião dos direitos sociais e coletivos, com autonomia para agir. A instituição ganhou mais força nos anos 1990, quando diversos marcos legais deram instrumentos jurídicos necessários para colocar governos e políticos no banco dos réus. O “quarto poder” foi depois acumulando acusações de excessos, o que chegou ao ápice durante a Lava-Jato. A atuação do MP exige sobriedade, firmeza e independência — ao que parece, até aqui, esse tem sido o caminho escolhido por Gonet.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891