Direita triunfa nas eleições, mas disputas internas desafiam unidade para 2026
Partidos como PSD, União Brasil, PP, Republicanos e PL elegem a ampla maioria dos prefeitos e vereadores pelo país
Logo depois do fechamento das urnas, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, foi às redes sociais para uma declaração publicada em conjunto no perfil de seu candidato à prefeitura em Goiânia, Sandro Mabel, ambos do União Brasil. “Não sou recém-convertido à direita. Nunca votei no Lula, ao contrário do meu adversário”, disse, em referência a Fred Rodrigues (PL), o rival do segundo turno. A mensagem era uma resposta à afirmação do concorrente de que a chapa do governador estaria negociando votos do PT, que terminou em terceiro lugar, com quase 25% dos votos. A preocupação era clara: mostrar quem é mais de direita em um reduto onde o eleitorado afinado com esse perfil mostrou seu tamanho no primeiro turno. A disputa goiana é um bom exemplo do protagonismo alcançado por esse espectro ideológico, cujos representantes obtiveram uma vitória expressiva nas urnas no último domingo, 6, mas agora se depara com suas diferenças e os interesses específicos de cada legenda.
O triunfo das agremiações que transitam do centro à direita pode ser medido por vários números. No país, cinco dos seis partidos que mais elegeram prefeitos estão nessa faixa (veja o quadro). Ainda que o grande vencedor tenha sido o PSD, de centro-direita, o PL, principal sigla da direita, teve desempenho muito bom nas capitais: reelegeu dois prefeitos (João Henrique Caldas, em Maceió, e Tião Bocalom, em Rio Branco) e levou nove ao segundo turno. Embora a ideia inicial fosse eleger mais de 1 000 prefeitos, a estratégia mudou para priorizar grandes centros. E deu certo: a sigla recebeu 15,7 milhões de votos, a melhor marca entre todas as legendas e bem superior à de 2020 (11 milhões). “Resolvemos não forçar a barra para nos concentrarmos onde tem mais votos”, diz Valdemar Costa Neto, cacique do PL. Outro ponto promissor foi o fato de a legenda ter aumentado em 43% o número de vereadores, a maior alta entre as grandes siglas. Os cinco partidos que ficam do centro à direta (PSD, União Brasil, PL, Republicanos e PP) elegeram quase 60% dos vereadores pelo país. Conseguir muitas cadeiras municipais é estratégico para o plano maior das legendas, que é ampliar suas bancadas na Câmara e no Senado na eleição de 2026.
O resultado das urnas é um reflexo da nova postura da sociedade. Se na virada do século havia um certo constrangimento do político e do cidadão em se autodeclararem direitistas, hoje os candidatos disputam os eleitores ligados aos valores tradicionais. “Há uns dez anos era pecado ser de direita no Brasil”, diz o cientista político Murilo Mendes, da Universidade de Brasília (UnB). Uma pesquisa do DataSenado com a Nexus, empresa de inteligência, mostra que em todos os estados há mais eleitores de direita que de esquerda, assim como nos recortes de gênero, renda, religião e escolaridade (veja o quadro abaixo). O fortalecimento da postura conservadora é ainda uma resposta ao avanço da esquerda no início dos anos 2000, um ponto fora da curva na história brasileira. Para o pesquisador Robert Vidigal, do Center for Global Democracy da Universidade Vanderbilt, o eleitor estava muito mais inclinado à esquerda do que realmente é. Ele considera que a retórica mais radical encampada por nomes da direita é uma forma de novos quadros se destacarem e promoverem mudança no cenário político, à medida que um posicionamento firme sobre aborto, drogas ou casamento gay chama muito mais a atenção do público do que uma agenda de liberalismo econômico. “A radicalização da direita é estratégia deliberada e programática de renovação política levada pelos líderes”, diz.
Outro sinal da musculatura foram as votações relevantes em regiões e setores da sociedade mais inclinados à esquerda. Ao considerar as vinte maiores cidades do Nordeste em que a eleição foi resolvida no primeiro turno, dezesseis terão prefeitos de partidos de direita. Quando se põe a lupa nos votos na cidade de São Paulo, maior colégio eleitoral do país, as periferias das zonas Leste e Sul, tradicionais redutos petistas, escolheram Pablo Marçal (PRTB) e Ricardo Nunes (MDB), respectivamente. Os programas sociais também deixaram de ser fonte de votos para o petismo, já que muitos eleitores nasceram após a criação do Bolsa Família, no primeiro governo Lula. Pesquisa AtlasIntel feita duas semanas antes da votação mostrou que Nunes tinha 8 pontos percentuais a mais que Guilherme Boulos (PSOL) entre beneficiários do programa (30% a 22%). Ao mesmo tempo, a direita surfa na segurança pública, uma pauta que ganhou relevância na última eleição e que representa um tabu para partidos mais progressistas.
Outro ponto importante tem sido a renovação das caras da direita. Exemplo disso foi a chegada ao segundo turno de dois deputados do PL em capitais importantes como Belo Horizonte (Bruno Engler, de 27 anos) e Fortaleza (André Fernandes, de 26 anos) — ambos passaram em primeiro lugar. Engler já havia despontado em 2020, quando teve quase 10% dos votos na disputa municipal, mas ficou longe de impedir a vitória no primeiro turno do então popular prefeito da capital mineira, Alexandre Kalil.
Como ocorre com todo crescimento, o avanço da direita não se dá sem dores. Cada vez maior e mais decisivo no jogo político, o espectro enfrenta divisões em várias frentes. Uma delas foi escancarada em São Paulo, com a guerra surda entre Bolsonaro e Marçal, que levou mais votos de bolsonaristas do que Ricardo Nunes. O comportamento titubeante do ex-presidente, hesitando em dar apoio ostensivo ao prefeito para não se contaminar com uma eventual derrota, foi duramente criticado por um nome insuspeito: o pastor Silas Malafaia, um dos mais fiéis aliados de Bolsonaro e porta-voz de parte expressiva dos evangélicos (leia a reportagem na pág. 38).
Se o racha na direita registrado em São Paulo ao menos já passou do pior momento, o mesmo não se pode dizer de outras cidades. Em Curitiba, está se desenhando outra dor de cabeça muito semelhante ao imbróglio paulistano. O vice-prefeito, Eduardo Pimentel (PSD) — candidato do prefeito Rafael Greca e do governador Ratinho Jr., ambos do PSD e com gestões muito bem avaliadas —, tem um político do PL como vice (o ex-deputado Paulo Martins), mas Bolsonaro deu sinal verde para Cristina Graeml, do minúsculo PMB, que cresceu nas retas finais e terminou colada ao candidato governista — 31,2% dos votos contra 33,5% de Pimentel. O que se espera é uma disputa acirrada pelo eleitor de direita que certamente deixará fissuras. O mesmo deve ocorrer em Goiânia, onde Caiado trocou farpas com o candidato de Bolsonaro antes de terminar o primeiro turno. Como quase nunca é possível brigar com o bolsonarismo e terminar tudo bem, fica a dúvida sobre quanto esses duelos impactarão as pretensões eleitorais de Caiado e Ratinho, ambos cotados para disputar a Presidência. Também haverá duelos dentro da direita em Manaus, João Pessoa, Campo Grande e Palmas. Em Belo Horizonte, embora o adversário de Bruno Engler (PL) seja Fuad Noman, do PSD, o duelo terá outra feição porque o prefeito terá o apoio de Lula e da esquerda.
Embalada pelo impeachment de Dilma desde a eleição de 2016, a onda conservadora espelha aspirações de segmentos relevantes da vida social. A direita é plural, pois abraça as demandas de conservadores nos costumes, defensores da economia liberal, evangélicos, militares, autoritários e até adeptos da pregação antissistema e de teorias conspiratórias. No entanto, quanto maior se torna, mais expostas ficam a heterogeneidade desse grupo e suas diferenças. Ainda que conversem em algumas pautas, a formação de um projeto coeso para 2026 é uma tarefa árdua. A vitória nas urnas mostra o potencial desse eleitorado, mas o uso da musculatura adquirida vai depender de sabedoria política.
Fora do 1º turno, X volta ao campo político
Suspenso no Brasil desde 30 de agosto por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, o X (antigo Twitter), a rede social mais influente no debate político, está de volta à arena eleitoral a tempo de participar do segundo turno das disputas municipais.
Conhecida mundialmente como um palco onde a direita predomina — até em razão do perfil ideológico de seu dono, o magnata Elon Musk —, a plataforma tende a dar combustível às candidaturas desse espectro ideológico. Dos quinze concorrentes nas capitais com mais seguidores no X, onze estão à direita, entre eles sete do PL. O partido é um dos que mais provocam engajamento na plataforma, por meio da família Bolsonaro (Jair Bolsonaro é o político brasileiro mais popular da rede, com 13 milhões de seguidores), de apoiadores do ex-presidente e de outros perfis de direita populares. “O bloqueio do X é para nos prejudicar. Depois das eleições, ele volta”, reclamou o ex-presidente em live no Instagram três dias antes do primeiro turno, quando disse que a medida visava ajudar a “esquerda podre”.
A relação da direita com a plataforma foi provada durante o período de suspensão, quando políticos como os deputados Ricardo Salles, do Novo, Nikolas Ferreira, Carla Zambelli e Mario Frias, todos do PL, permaneceram ativos na rede, a despeito da proibição. Pesquisa Datafolha de setembro mostrou que 73% dos apoiadores de Bolsonaro e 80% dos eleitores de Pablo Marçal (PRTB) discordavam do bloqueio do X, enquanto 70% dos simpatizantes de Lula e 78% do eleitorado de Guilherme Boulos (PSOL) se disseram favoráveis ao ato.
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914