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Derrota de Boulos impõe revés a Lula e lança dúvidas sobre planos da esquerda

A aposta do PT na eleição paulistana e o fracasso advindo dela reacenderam animosidades antigas no partido sobre estratégias eleitorais

Por Ramiro Brites Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Bruno Caniato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 2 nov 2024, 08h00

Em um palanque montado no Campo Limpo, bairro na Zona Sul de São Paulo, onde Guilherme Boulos mora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva contou na campanha eleitoral deste ano que conheceu seu afilhado político “fazendo protesto na frente da minha casa”. Lula se referiu a manifestações do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) em um terreno da Volkswagen em São Bernardo do Campo, em julho de 2003. Era o primeiro ano de Lula no Planalto e o acampamento com cerca de 4 000 pessoas, no berço político do presidente, foi o primeiro desafio imposto por movimentos sociais ao PT no governo. “A partir dali começamos a nos entender e nasceu uma amizade e uma relação de respeito muito grande”, disse Lula. Passados quinze anos da ocupação, Boulos marchou com um “exército” de sem-teto até as portas do Sindicato dos Metalúrgicos na mesma cidade do ABC. Lula estava prestes a ser preso pela Lava-Jato, e Boulos estava disposto a não permitir que ele cumprisse a ordem. O petista se entregou, mas antes discursou ao lado de líderes de esquerda. “Para mim, é motivo de orgulho pertencer a uma geração que já está no final vendo nascer dois jovens disputando o direito de ser presidente”, disse citando Boulos, recém-filiado ao PSOL, e Manuela d’Ávila, na época do PCdoB — hoje, fora do partido, ela faz críticas à esquerda.

Já a aproximação entre Boulos e Lula se estreitou ainda mais, a ponto de o petista decidir bancá-lo na disputa pelo comando da maior cidade do país. Havia motivos para otimismo. Em 2020, abraçado apenas pelo PSOL e dois nanicos de esquerda (PCB e Unidade Popular), Boulos havia surpreendido na sua primeira eleição ao Executivo, foi ao segundo turno paulistano e, embora derrotado por Bruno Covas (PSDB), amealhou 40,62% dos votos válidos. Agora, com o apoio de Lula, do governo federal e de uma frente de esquerda que incluía PT, PDT, Rede, PCdoB e PV, o seu desempenho eleitoral foi o mesmo: conquistou 40,65% dos eleitores e ficou muito atrás do vencedor, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que teve quase 20 pontos a mais (59,35%).

O tamanho da derrota é grande por qualquer ângulo que se olhe. A campanha de Boulos foi a mais cara do país — 81,2 milhões de reais. O fiasco veio mesmo com a candidatura trazendo a peso de ouro gente como o marqueteiro Lula Guimarães, que ajudou João Doria a vencer em 2016 e cuidou das campanhas presidenciais de Eduardo Campos e Marina Silva em 2014 — ele recebeu nada menos que 8 milhões de reais. O trabalho de marketing foi tentar desvincular do candidato a pecha de radical e “invasor”. Outro furo na água: o político foi o campeão em rejeição. Boulos também gastou 8,8 milhões de reais para impulsionar posts nas redes sociais, e 7,4 milhões de reais para levar a militância às ruas — sinal dos tempos difíceis para a esquerda, que sempre se orgulhou de ter militância orgânica (veja o quadro).

ENGAJADO - Lula em ato na Paulista: esforço do presidente para eleger o pupilo
ENGAJADO - Lula em ato na Paulista: esforço do presidente para eleger o pupilo (Ricardo Stuckert/PR)
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A campanha começou com Boulos tentando passar uma imagem menos radical. Nessa fase, teve de modular o discurso da esquerda em defesa da ditadura venezuelana e se virar para explicar por que, como relator, deu parecer para livrar o aliado André Janones (Avante-MG) da acusação de praticar rachadinha em seu gabinete. Para Luana Alves (PSOL), vereadora reeleita, a busca pragmática pelo eleitor de centro emitiu um sinal confuso para a militância nas ruas. “Contra a máquina, a gente tem que ter movimento (de militância)”, defende ela.

O Boulos “paz e amor” durou pouco. À medida que a candidatura se mostrava incapaz de sair da estagnação, ele foi aumentando o tom, até terminar a campanha disparando acusações contra Nunes, de corrupção a envolvimento com o PCC. Um antigo boletim de ocorrência de uma suposta agressão do prefeito contra sua mulher, que não teve desdobramentos, foi explorado à exaustão. Somente no segundo turno, a campanha de Nunes ganhou na Justiça Eleitoral 32 direitos de resposta por falsas acusações — Boulos obteve contra Nunes apenas uma vitória no mesmo quesito. As últimas semanas foram marcadas pelo vale-tudo, sendo a cereja do bolo a tentativa igualmente fracassada de dialogar com o eleitor de Pablo Marçal ao participar de uma polêmica live com o ex-rival que, na reta final do primeiro turno, divulgara contra ele um laudo falso “atestando” que era usuário de cocaína. Também tentou emular Lula ao lançar a “Carta ao Povo de São Paulo”, uma referência direta à carta lida por Lula aos brasileiros, em 2002.

NÃO DEU - Lula Guimarães: tentativa fracassada de suavizar imagem do psolista
NÃO DEU - Lula Guimarães: tentativa fracassada de suavizar imagem do psolista (Zanone Fraissat/Folhapress/.)
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Há vários motivos para dizer que a derrota de Boulos foi também a derrota de Lula. O presidente atuou para torná-lo candidato desde 2022, quando fez com que o psolista desistisse de concorrer ao governo do estado para apoiar Fernando Haddad, que foi derrotado. Como contrapartida, impôs Boulos ao PT em São Paulo — foi a primeira vez desde a sua fundação que o partido não teve um “prefeitável”. Lula também articulou a volta de Marta Suplicy à sigla e a sua posição de vice na chapa. Foi ainda a disputa na qual mais se engajou, tanto que tomou uma multa de 15 000 reais em maio por ter pedido votos a Boulos fora do período eleitoral, durante o ato de 1º de Maio. No primeiro turno, São Paulo foi a única cidade que o presidente visitou mais de uma vez em atos de campanha.

Sob a batuta de Lula, boa parte da Esplanada embarcou na campanha do candidato do PSOL. Já em junho, os ministros Wellington Dias (Desenvolvimento e Assistência Social) e Márcio Macêdo (Secretaria-Geral da Presidência) anunciaram ações do programa Cozinhas Solidárias no Grajaú, na Zona Sul — o projeto, de autoria de Boulos, foi inspirado em ações do MTST. Em junho, um palanque foi montado na Zona Leste para inaugurar a pedra fundamental dos campi do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O evento contou com a presença de Lula, do ex-prefeito e titular da Fazenda, Fernando Haddad, dos ministros do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, da Educação, Camilo Santana, e das Cidades, Jader Filho — este, por ironia, filiado ao MDB de Nunes. Ministro mais importante do governo, Haddad caminhou em uma das maiores favelas de São Paulo (Heliópolis) para pedir votos ao aliado. Boulos também teve ajuda de última hora de Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia, filiado ao PSD (que estava na coligação de Nunes). Silveira aproveitou dos apagões que assolaram a capital paulista para criticar a atual gestão municipal. Do lado adversário, quem trabalhou firmemente a favor de Nunes foi o governador Tarcísio de Freitas, com direito a uma tremenda bola fora no dia da votação, quando divulgou, sem provas, que o PCC estaria orientando a partir dos presídios votação em Boulos. Por causa disso, a oposição entrou com um pedido de impeachment de Tarcísio na Assembleia Legislativa de São Paulo na última quarta, 30. Apesar da gravidade do caso, a ação não deve prosperar.

CLAQUE CARA - Apoiadores na rua: despesa milionária com a militância
CLAQUE CARA - Apoiadores na rua: despesa milionária com a militância (Ian Maenfeld/Fotoarena/.)
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O fracasso de Boulos espelhou uma dificuldade cada vez mais notória da esquerda: a de impedir que parte do eleitorado que sempre esteve a seu lado migrasse para as candidaturas de centro e direita. Um dado revelador — inclusive sobre o fracasso da ofensiva eleitoral do governo federal — é o que mostra que a candidatura PSOL-­PT teve dificuldades até com os beneficiários do Bolsa Família, o maior programa social do governo e que virou uma das marcas das gestões petistas. Também perdeu o voto das periferias, o que fica claro no fato de ter ganhado em apenas três das 57 zonas eleitorais da cidade, uma delas no Centro. A colocação de Marta Suplicy como vice, em razão da boa avaliação que teve do eleitorado da periferia em sua gestão, não mostrou resultado. A candidatura perdeu para Nunes mesmo na Zona Sul, região conhecida pela forte influência de vereadores do PT, em especial da família Tatto (tanto que uma vasta área ali é conhecida como “tattolândia”). Boulos ainda foi derrotado entre os eleitores de baixa renda e menor escolaridade, outros nichos eleitorais da esquerda. Por fim, o candidato do PSOL conseguiu convencer apenas 65% dos eleitores que em 2022 optaram por Lula nas urnas.

DE OLHO - Lula no dia da prisão: citação a Boulos como o futuro da esquerda
DE OLHO - Lula no dia da prisão: citação a Boulos como o futuro da esquerda (Leo Correa/AP/Imageplus)

A aposta do PT e de Lula na eleição paulistana e o fracasso advindo dela reacenderam animosidades antigas no partido sobre estratégias eleitorais, mas principalmente colocou em dúvida o futuro político de Boulos. Depois de tentar duas vezes a prefeitura, é difícil arriscar qual será o seu próximo passo. Pode disputar o governo do estado ou o Senado em 2026, mas a única vitória certa talvez seja se reeleger deputado — ele foi o mais votado em 2022, com pouco mais de 1 milhão de eleitores. Há quem considere que possa ganhar um ministério, mesmo pequeno, em uma eventual reforma em 2025. Em discurso aos seguidores após a grande derrocada nas urnas, o candidato afirmou que era vitorioso por ter recuperado a dignidade da esquerda na campanha. Na verdade, Boulos saiu da campanha menor do que entrou.

Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917

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