Da euforia ao medo da prisão: o papel das redes bolsonaristas na invasão
Desordem em Brasília surpreende autoridades e choca o país, mas mobilização virtual da extrema direita já fazia muito barulho havia dias
As forças de segurança e as autoridades em Brasília foram, ao que parece, tomadas de surpresa pela mobilização golpista que levou o caos à cidade no último dia 8. Mas só não ouviram porque estavam surdos (ou fingiam estar), pois a gritaria já era estrepitosa nos dias que antecederam a invasão bárbara. O local onde as estratégias eram traçadas não era o Quartel-General do Exército ou acampamentos do tipo espalhados pelo país, mas a terra sem lei que se tornou a internet brasileira. Na primeira semana de janeiro, os canais de extrema direita simpáticos ao presidente Jair Bolsonaro, que não reconhecem a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, atingiram uma média diária de quase 40 milhões de interações no Instagram e no YouTube, quase quatro vezes o burburinho que era registrado no fim de dezembro (veja o quadro).
Apesar do alvoroço causado, boa parte da mobilização foi tocada por contas anônimas para o grande público. Na tarde de 7 de janeiro, por exemplo, a influencer Ana Priscila Azevedo divulgou uma mensagem que foi lida por 40 000 pessoas no seu grupo do Telegram chamado “A queda da Babilônia”. O texto convocava as pessoas para ir a Brasília, avisando que “o golpe não é do Bolsonaro e nem das Forças Armadas, é do povo brasileiro”. Ao longo do dia, esse e outros grupos espalharam mensagens com informações sobre caravanas partindo de várias regiões do Brasil e um sugestivo guia intitulado “Esteja pronto para o gás lacrimogêneo”, com instruções que previam a confusão com a polícia. No Twitter, vídeos com o chamado de “Vamos tomar Brasília” começaram a circular já no dia 2.
O frenesi bolsonarista nas redes se deu ao luxo até de fazer viralizar um codinome para se referir à desordem que preparavam para Brasília. Os golpistas usaram largamente a expressão “festa da Selma”, em redes sociais abertas, para coordenar as etapas da invasão e informar o endereço onde ocorreria a confraternização (a Praça dos Três Poderes). “Selma”, no caso, é uma referência à palavra “selva”, usada como um grito de guerra comum pelo Exército brasileiro. “Foi algo muito bem articulado por baixo dos panos, e pensado para um momento em que o governo Lula estaria mais tranquilo e Brasília teria menos policiamento do que no dia da posse”, avalia Ana Julia Bonzanini Bernardi, cientista política e pesquisadora do Nupesal-UFRGS, que monitora a atuação desses grupos nas redes sociais.
Mas nem só de desconhecidos foi formado o exército digital que trabalhou para a convocação da desordem. A turma golpista contou com o incentivo de influenciadores bolsonaristas, artistas e pastores evangélicos, como Josué Valandro, da Igreja Batista Atitude da Barra da Tijuca, frequentada pela ex-primeira dama Michelle Bolsonaro. Ele compartilhou um vídeo de atos de vandalismo no Congresso e demonstrou apoio aos criminosos. A blogueira Barbara Destefani, dona do perfil Te Atualizei, foi quem mais fomentou os atos no Twitter, onde tem 2 milhões de seguidores — uma postagem na manhã de 8 de janeiro, em que incentiva apoiadores a ir às ruas, atingiu mais de 800 000 pessoas. Os cantores gospel Salomão Vieira e Fernanda Ôliver transmitiram a invasão em Brasília ao vivo no Instagram para milhares de seguidores. Alvo de mandado de prisão expedido pelo ministro Alexandre de Moraes, o humorista Bismark Fugazza, do Canal Hipócritas, no YouTube (1,6 milhão de inscritos), disse que o Brasil iria parar e pediu a adesão de caminhoneiros.
O Telegram foi, mais uma vez, a arena preferida do bolsonarismo, por permitir a circulação de fake news, teorias conspiratórias, discursos de ódio e pregações contra a democracia. Ao longo do dia, foram várias as lives nas quais os terroristas produziam provas em abundância contra si ao filmar as invasões que promoviam a prédios públicos. Ana Priscila Azevedo, por exemplo, compartilhou vídeos em que aparece dentro do Palácio do Planalto afirmando aos gritos que estava “tomando o poder de assalto”. Adriano Castro, que participou do primeiro BBB, em 2002, reeditou mais de vinte anos depois, por quatro horas, o seu próprio “big brother” ao transmitir ao vivo em seu canal (226 000 inscritos) a caminhada dos golpistas do QG do Exército à Praça dos Três Poderes. “Para quem disse que a gente não conseguia, que ia ter Guarda Nacional, ia ter isso, não sei o quê. Não teve foi nada”, disse, entusiasmado.
A euforia bolsonarista, no entanto, foi diminuindo muito rápido. Com a repercussão negativa do carnaval golpista e a reação pesada que se desenhava, o alarido nas redes foi diminuindo — ou mudando de tom. O que era comemoração pela tomada das instituições ou coragem para vandalizar o patrimônio público se tornou desespero e medo da prisão. O próprio Adriano escondeu seu vídeo e mudou a foto do perfil. Outros influencers passaram a dizer que apoiavam a manifestação, mas não a desordem e o vandalismo. Muitos passaram a tentar emplacar a estapafúrdia tese de que foram “infiltrados” que promoveram o vergonhoso quebra-quebra.
A algazarra de Brasília é um novo capítulo da conturbada relação entre política e redes sociais. O fenômeno já podia ser notado nas “jornadas de junho”, em 2013, quando protestos com multidões tomaram as ruas do país. Uma imagem comum eram os cartazes com a inscrição “Saímos do Facebook”, uma boa alegoria do alerta inaugural sobre a capacidade de a internet influenciar as ruas. Anos depois o Facebook e o WhatsApp se tornariam ferramentas para levar Bolsonaro ao poder, em uma estratégia emulada da campanha eleitoral da referência política do brasileiro, o americano Donald Trump, em 2016. Em ambos os casos, a história começou com mentiras nas mídias sociais e terminou com a recusa em aceitar a derrota. Nos EUA, ela levou à invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, quando o motim também foi fomentado com aplicativos e transmitido ao vivo por celulares — o que ajudou a levar 950 pessoas ao banco dos réus. Isso não impediu que o episódio se repetisse em sua versão verde-amarela. “A radicalização on-line e o extremismo são praticamente imparáveis. É como enxugar gelo o tempo inteiro”, afirma Michele Prado, autora de Tempestade Ideológica — Bolsonarismo: a Alt-right e o Populismo Iliberal no Brasil.
O pesadelo terrorista na capital do país reforça essa triste verdade. Depois dos disparos em massa de fake news em 2018, o TSE fechou parceria com redes sociais e agências de checagem, e as plataformas prometeram políticas mais eficientes para banir usuários e impedir a disseminação de informações falsas ou antidemocráticas. Não foi o suficiente, tanto que a eleição de 2022 foi marcada pelas fake news e pelos ataques às instituições e ao sistema eleitoral. “Falta responsabilização das plataformas, assim como falta punição a quem produz a desinformação. E, a longo prazo, é preciso investir em educação midiática, para tornar as pessoas mais críticas aos conteúdos que consomem”, diz Ana Bernardi. O caminho para pacificar o uso político das redes sociais é longo, e o Brasil, pelo visto, anda meio perdido. Que o episódio de Brasília sirva ao menos para que as autoridades passem a escutar melhor a gritaria que vem do submundo terrorista. Barulho é o que não falta.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824
Outro lado
Após a publicação da reportagem, a blogueira Barbara Destefani, do canal Te Atualizei, enviou uma nota para argumentar que não foi o perfil do Twitter que mais fomentou os ataques golpistas no dia 8 de janeiro, ao contrário do que aponta o relatório dos pesquisadores Ana Julia Bonzanini Bernardi e Alexsander Dugno Chiodi. Ela diz que estava em viagem no dia da invasão de Brasília e que só tomou conhecimento da manifestação após todo o ocorrido. Leia a defesa na íntegra:
“Acabei de ver a matéria na VEJA onde vocês escrevem o seguinte, abre aspas: