Crime no Paraná mexe com as campanhas e coloca instituições em alerta
Fruto do radicalismo e da escalada da violência política, o assassinato de um petista por um bolsonarista mostra avanço da intolerância no país
Parece preparação para uma guerra — e, infelizmente, esse é tom do que estamos vivendo. O pleito de outubro, o mais polarizado desde a redemocratização, já movimenta um forte e inédito aparato para reforçar a segurança das principais campanhas. Responsável por cuidar da proteção dos candidatos, a Polícia Federal adquiriu cerca de setenta carros blindados para transportar os políticos nos próximos meses, algo jamais visto em eleições passadas. Também foram entregues coletes e pastas à prova de bala (que, abertas, viram um escudo), outra novidade de 2022. Há ainda a previsão de um número recorde de 300 policiais para a segurança dos presidenciáveis, incluindo um efetivo que acompanhará em tempo integral cada um deles. O número de homens nessas equipes vai obedecer à análise de risco feita pelo setor de inteligência da corporação. Pela escala recém-criada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o atual mandatário, Jair Bolsonaro (PL), favoritos na disputa, são os que naturalmente estão mais expostos ao perigo.
Os episódios recentes de violência no contexto eleitoral mostram que os cuidados, longe de ser exagerados, são necessários dentro do crescente ambiente de ódio na política do país. Já ocorreu quase de tudo nos últimos meses — de disparos feitos com bomba de fezes a ataques com drones despejando agrotóxico em eventos (veja o quadro). A onda de hostilidades atingiu o ponto máximo no sábado 9, com o chocante assassinato do petista Marcelo Arruda em Foz do Iguaçu (PR), abatido a tiros na sua festa de aniversário de 50 anos pelo bolsonarista Jorge Guaranho. A candidatura de Lula era o tema da celebração, invadida pelo atirador aos gritos de “Aqui é Bolsonaro”. Guaranho, que também foi baleado quando sua vítima revidou — os dois vieram da área de segurança pública —, encontrava-se internado na UTI na tarde da quinta 14 e teve a prisão preventiva decretada.
A repercussão do crime, símbolo dos tempos terríveis que contaminam a política brasileira, rapidamente chegou a Brasília. Na terça 12, uma comitiva do PT, liderada pela presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, se reuniu com o procurador-geral da República, Augusto Aras, para pedir que a investigação da morte de Arruda seja transferida para a PF. Os petistas temem que autoridades paranaenses evitem concluir que o assassinato teve motivação política. Aras, no entanto, desapontou o grupo ao afirmar que, por ora, o caso não atende aos critérios exigidos para a federalização porque a investigação no Paraná nem terminou. Os petistas também queriam que o PGR abrisse inquérito contra o presidente por incitação à prática de crimes, devido a seus discursos sobre fuzilar os opositores ou matá-los com “uma granadinha”. Ouviram outra negativa. Na quarta 13, a oposição se reuniu com o ministro Alexandre de Moraes, que comandará o Tribunal Superior Eleitoral a partir de agosto. Os dirigentes de PT, PSB e outras legendas pleitearam maior rigor para conter o “discurso de ódio” de Bolsonaro nas redes sociais.
A preocupação faz todo o sentido. A campanha mal começou e, baseando-se na falta de diálogo e de gestos de pacificação de ambos os lados, tudo leva a crer em uma escalada da violência. No PT, a segurança vem sendo reforçada desde antes do anúncio da chapa Lula-Alckmin. A mudança de residência (o petista trocou seu apartamento em São Bernardo do Campo por uma confortável casa no Alto de Pinheiros, um dos bairros mais valorizados de São Paulo), no fim do ano passado, além de propiciar maior conforto, teve como objetivo abrigar os homens que fazem sua proteção (aparato a que todo ex-presidente tem direito) e facilitar os deslocamentos. Os comícios também passaram a contar com cuidados especiais. No sábado 9, em Diadema, um cercadinho VIP para pessoas cadastradas afastou o público em geral do palco principal. Além disso, todos os presentes passaram por detectores de metal.
Três dias após a morte de Marcelo Arruda, o partido distribuiu uma cartilha aos filiados dando dicas de como eles deveriam se comportar diante de adversidades, como sempre filmar as ações e andar em grupos. Ao mesmo tempo, o PT tenta jogar para o lado de Bolsonaro a pecha de responsável por insuflar as hostilidades. “A violência política e a tentativa de inibir a sociedade são estratégias do presidente. A nossa reação a isso é deixar claro que somos a turma dos sem ódio e sem medo”, diz o deputado Alexandre Padilha, um dos principais membros da campanha petista. Na teoria, o discurso é perfeito. Na prática, embora vários tons abaixo do atual presidente, Lula emite sinais que pouco ajudam a pacificar o clima. Em Diadema, elogiou no palco o ex-vereador Manoel Eduardo Marinho, o Maninho, preso em 2018 após atirar contra um caminhão um opositor do PT. A vítima conviveu com graves sequelas até morrer de Covid-19, no ano passado. Semanas antes, ele já havia deixado de barbas arrepiadas os companheiros mais equilibrados ao demonstrar compaixão pelos “meninos” que sequestraram o empresário Abilio Diniz, em 1989.
Do outro lado do espectro, a notícia do assassinato foi recebida como uma bomba. Embora o presidente procure fugir de sua responsabilidade, a retórica agressiva, as agressões e as ameaças constantes aos rivais e às instituições feitas por Bolsonaro ajudaram, evidentemente, a deflagrar e a construir esse clima de confronto no país. Na verdade, essa “guerra” é sua principal atividade política. Mesmo depois da tragédia, a intenção não é levantar bandeiras brancas ou promover o diálogo, mas continuar a atacar. Nessa linha de atuação, o entorno do presidente prepara contragolpes em várias frentes. Uma das ações é tentar colar no adversário a imagem de incentivador da violência. Na quarta 13, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) desenterrou dezenas de postagens e reportagens em uma série de posts nas suas redes sociais para tentar jogar para a esquerda a responsabilidade sobre a barbárie.
Evidentemente, a preocupação com a segurança, que vem desde a facada desferida por Adélio Bispo na campanha passada, só aumentou. O assassinato do ex-primeiro ministro japonês Shinzo Abe, há uma semana, já havia acendido um poderoso sinal de alerta. O fatídico episódio em Foz do Iguaçu complementou a necessidade de maiores cuidados. Por essa razão, a utilização de colete balístico vai continuar (como ocorreu na Marcha para Jesus, em São Paulo, no sábado 9) e a escolha do local de lançamento oficial da campanha, no ginásio do Maracanãzinho, no Rio, no próximo dia 24, visou a facilitar a vigilância do público esperado, de 10 000 pessoas. O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), chefiado pelo general Augusto Heleno, deverá reforçar ainda o aparato presidencial durante o período eleitoral, mantendo em sigilo o número de agentes envolvidos e as operações.
Embora as hostilidades mais graves não sejam uma novidade no país, especialmente em cidades menores, sua intensidade aumentou brutalmente nos últimos tempos. O ano de 2018, o da última eleição, ficou marcado como um dos piores no acirramento dos ânimos no nível federal: houve discursos pregando abertamente o extermínio de adversários, brigas que resultaram em morte, um atentado a tiros contra um ônibus da caravana de Lula no Paraná e a facada que quase tirou a vida de Bolsonaro em Juiz de Fora (MG). A diferença agora é uma frequência ainda maior de agressões. Na comparação com o mesmo período de 2020, o primeiro semestre teve um crescimento de 23% nessas ocorrências, em geral ameaças e agressões. Especialistas temem que o número de casos exploda durante a campanha, e haja caos nas ruas após a divulgação dos resultados eleitorais. “Temos dois discursos que estão caminhando juntos: o da intolerância e o da fraude eleitoral, de que o sistema brasileiro é vulnerável”, alerta o professor Felipe Borba, coordenador do levantamento, produzido pelo Grupo de Investigação Eleitoral da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Para chegarmos a uma situação tão crítica, estudiosos destacam, além do próprio discurso belicista do presidente, o papel das redes sociais para a criação de um clima de “pânico moral”, ao disseminar teorias conspiratórias e a ideia de que os adversários não têm legitimidade para assumir o governo. Tal clima beligerante, geralmente insuflado por fake news, levaria a situações em que pessoas comuns se sentiriam autorizadas a praticar atos de violência. O sociólogo Pablo Almada, pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência da USP, diz que alguns traços de comportamento dos apoiadores de Bolsonaro são próximos do fanatismo. “Talvez seja um comportamento que, a princípio, tende mais ao autoritarismo nas relações sociais. Se vai se converter em fanatismo, só o tempo dirá”, diz. “Nada exclui que possa haver alguma radicalização com o 7 de Setembro”, completa. No ano passado, no Dia da Independência, o próprio Bolsonaro foi às ruas em Brasília e em São Paulo atacar o Supremo Tribunal Federal.
A escalada de ódio na política, lamentavelmente, é um fenômeno global. O caso mais lembrado é o de 6 de janeiro de 2021, quando apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio, sede do Congresso americano, para impedir a decretação da vitória de Joe Biden. Na ocasião, morreram cinco pessoas, entre manifestantes e policiais. Episódios como esse mostram que a violência política tem encontrado espaço em várias partes do mundo principalmente em consequência da radicalização dos discursos. Uma hipótese defendida pelo respeitado ensaísta indiano Pankaj Mishra, autor do livro Age of Anger — A History of the Present (A era da raiva, uma história do presente), é que o fenômeno tem raízes no fim da Guerra Fria, período em que se criou uma expectativa exagerada do começo de uma era de prosperidade econômica acompanhada de harmonia e tolerância globais. O sentimento de frustração de parte da população, que não progrediu economicamente, vem sendo então canalizado por algumas forças, notadamente a extrema direita, abrindo portas para a chegada ao poder de líderes autoritários e demagógicos. Na avaliação de Kenneth Roberts, professor da Universidade Cornell e Ph.D. em política latino-americana pela Universidade Stanford, ambas nos Estados Unidos, os discursos antissistema e a cultura do armamento defendida por esses grupos são algumas das raízes da violência. “A ‘nova direita’ não se define apenas por suas posições econômicas, mas também ideológicas”, disse Roberts a VEJA.
O fanatismo político alimentado nos tempos atuais por essas correntes guarda, sem dúvida, semelhança com a fé cega de adeptos de religiões, tanto no comportamento quanto na retórica. “Nos Estados Unidos e no Brasil, atores políticos tentam colocar seus opositores como uma força do mal ou uma ameaça à nação. Nessa visão deturpada, a política se torna uma batalha entre o bem e o mal, e aí estamos a um passo de chegar à violência”, afirma Kenneth Roberts. Não por coincidência, esse tipo de argumento tem sido frequentemente usado por Bolsonaro. “Temos uma luta do bem contra o mal”, declarou o presidente sobre a disputa com Lula. Christopher Thornhill, professor de direito da Universidade de Manchester (Inglaterra), concorda e diz que a polarização em clima de guerra santa também dá origem a condições nas quais a democracia se torna frágil, às vezes levando ao confronto civil ou ao autoritarismo. Ele avalia que esses desfechos podem surgir quando representantes de uma corrente ideológica ostentam características populistas e autoritárias. “Isso é mais claramente observável nas tentativas frenéticas de Trump de permanecer no cargo, mas também é visível no Brasil sob Bolsonaro, cuja dependência de fontes informais de violência é impressionante”, explica. Roberts acrescenta que discursos populistas tendem a gerar movimentos contra as instituições, o que pode minar o estado democrático de direito e abrir a porta para a violência.
As opções para desarmar essa bomba aqui no Brasil passam pela atuação das autoridades, não só com o trabalho de investigação de grupos mais extremistas como também para dificultar a disseminação de discursos que miram a radicalização. Segundo a pesquisadora Maria Paula Almada, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital da Universidade Federal da Bahia (UFBA), há uma enorme pressão da sociedade civil para que plataformas digitais e o Judiciário derrubem conteúdos com notícias falsas sobre as eleições. “O que é veiculado nessas plataformas precisa passar por um monitoramento, sem ferir os direitos daqueles que estão se expressando, para que não seja propagado o discurso de ódio, por exemplo”, diz.
Felizmente, os acontecimentos recentes no país geraram uma multiplicação de apelos ao bom senso. Desde que assumiu o TSE, em fevereiro, Edson Fachin adotou o slogan “paz e segurança nas eleições”, o que tem repetido nas sessões de julgamento diante da previsão de que a Justiça Eleitoral encontrará dificuldades pelo caminho. A mais desafiadora delas, à qual os ministros já estão atentos, é o questionamento que os militares têm feito às urnas eletrônicas, o que pode reforçar a tese golpista da convocação das Forças Armadas para auditar os votos caso Bolsonaro seja derrotado. Para os magistrados, se esse roteiro se confirmar, é provável que protestos violentos ocorram nas ruas. Na quarta 13, o deputado Alencar Santana (PT-SP) protocolou uma consulta ao TSE sobre a possibilidade de se editar uma norma que proíba o porte de armas no dia da eleição para evitar tragédias. Os juízes prometem avaliar a proposta, mas a ideia foi bem recebida. Pacificação de ânimos, apelos à civilidade e novos meios para conter o radicalismo são instrumentos mais do que necessários para restaurar um ambiente de normalidade em tempos tão anormais para a nossa democracia.
Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798