CPI da Pandemia esquenta os ânimos entre Executivo e Judiciário
A criação da comissão alimenta teorias de conspiração e eleva o tom das provocações
Em 2019, logo depois da posse de Jair Bolsonaro, ganhou corpo no Congresso um movimento a favor da criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2020, com a aquiescência do presidente da República, militantes bolsonaristas realizaram manifestações em todo o país defendendo o fechamento da mais alta Corte de Justiça do país. O primeiro movimento fez muito barulho, alimentou diversas teorias, mas não prosperou. O segundo foi sufocado pela ação enérgica do próprio STF, que abriu uma investigação para identificar os responsáveis pelos protestos e decretou a prisão dos líderes. Predomina dos dois lados, Executivo e Judiciário, a suspeita de que um poder tenta se sobrepor ao outro — o que, se verdadeiro, configuraria uma inadmissível trama contra a democracia.
O presidente, por exemplo, tem convicção de que o STF quer inviabilizar seu governo. Na semana passada, Bolsonaro deixou isso claro ao acusar o ministro Luís Roberto Barroso de fazer “politicalha”. Na quinta-feira 8, Barroso atendeu ao pedido dos senadores Alessandro Vieira e Jorge Kajuru, ambos do Cidadania, e determinou ao Congresso que instaurasse uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar eventuais omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia de Covid-19. A CPI é um instrumento legítimo, mas pode-se até questionar se este é o momento mais adequado para instalá-la (de fato, não é). A reação de Bolsonaro, porém, foi desproporcional. “Barroso, nós conhecemos seu passado, sua vida, o que você sempre defendeu, como chegou ao STF, inclusive defendendo o terrorista Cesare Battisti. Então, usa a sua caneta em defesa da vida e do povo brasileiro, e não para fazer politicalha dentro do Senado. Se tiver um pingo de moral, ministro Barroso, mande abrir processo de impeachment contra alguns dos seus companheiros do STF”, provocou o presidente.
Jair Bolsonaro
Na sequência, Bolsonaro disparou um segundo petardo. Em uma conversa com Jorge Kajuru, o presidente acusou o Supremo de “ativismo” e sugeriu ao congressista que entrasse com uma ação solicitando que a Corte também determinasse que o Senado colocasse em pauta pedidos de impeachment contra ministros do STF. Kajuru lembrou que ele já havia feito isso em relação ao ministro Alexandre de Moraes. “Muito bem”, elogiou o presidente. A conversa foi gravada e divulgada pelo senador. Segundo ele, com o aval do presidente, que nega. O fato é que, há dois anos, Executivo e Judiciário vivem esse clima de guerra fria. Bolsonaro já disse que o tribunal estava esticando a corda, já declarou que sua paciência havia “acabado” ao saber que o ministro Alexandre de Moraes havia autorizado a realização de buscas contra seus apoiadores e já advertiu, através do chefe de Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, que, se a Corte determinasse a apreensão de seu celular, isso poderia gerar “consequências imprevisíveis”.
Os ministros do STF se comportam de maneira mais discreta, mas não menos belicosa. Sob reserva, um deles disse a VEJA que os julgamentos e decisões de temas de interesse do Planalto são analisados sob um prisma diferente. “A todo momento, vemos o presidente tentar jogar algum segmento da sociedade contra o Supremo. Aconteceu isso recentemente com os evangélicos e já aconteceu com os militares. É preciso colocar limites nessas ações”, diz um dos mais experientes juízes da Corte. O magistrado cita como exemplo a decisão da ministra Rosa Weber que suspendeu liminarmente a validade de grande parte do decreto do governo que flexibilizava a compra e o porte de armas. “Essa decisão desmonta um perigoso projeto de armar a população sabe-se lá para que fins”, completa o ministro. Foi seguindo essa mesma linha que, no início do mês, o decano do STF Marco Aurélio Mello pediu explicações a Bolsonaro por ele ter afirmado que a população poderia “contar com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade”. Há óbvios exageros de ambos os lados.
Ministros do STF
O Judiciário mantém ativa uma série de procedimentos que funcionam, segundo palavras de alguns ministros, como “barreiras de contenção” (veja o quadro). O exemplo mais nítido dessa estratégia ocorreu no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Logo depois da eleição, em outubro de 2018, partidos de oposição ingressaram com ações que pediam a cassação do mandato do presidente. Os processos apuram se a campanha de Bolsonaro se beneficiou de disparos massivos de mensagens, o que caracterizaria abuso de poder econômico. Sem provas, a previsão era arquivar os casos no fim do ano passado. Reservadamente, porém, o ministro Alexandre de Moraes, que também atua no TSE, recomendou que o julgamento só acontecesse depois que as investigações sobre a disseminação de fake news no inquérito que tramita no STF e tem o próprio ministro como relator estivessem mais avançadas. Na prática, a iniciativa do ministro mantém a espada da justiça sob a cabeça de Bolsonaro de forma permanente.
Na quarta-feira 14, quase uma semana depois da liminar de Luís Roberto Barroso em favor da CPI da Pandemia, o plenário do Supremo confirmou a decisão do ministro e, por 10 votos a 1, validou a ordem de instalação da comissão de inquérito. “Nas democracias, a Constituição institucionaliza e limita o exercício do poder político. Diversos países do mundo vivem recessão democrática. Exemplos conhecidos são Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Geórgia, Venezuela. Todos eles, sem exceção, assistiram a processos de ataques e esvaziamento de seus tribunais constitucionais. Quando a cidadania daqueles países despertou, já era tarde. Reafirmar o papel das Supremas Cortes de proteger a democracia e os direitos fundamentais é imprescindível ato de resistência democrática”, disse o ministro Barroso durante o julgamento, reafirmando mais uma vez o alvo e o alcance da decisão. A guerra continua.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734