Congresso em ebulição eleva risco de crise generalizada entre os Poderes
O embate político faz parte do jogo democrático. O problema é quando ele interdita a tramitação de projetos de interesse do país
Faz tempo que a disputa acirrada entre a base de apoio a Lula e a oposição leal a Jair Bolsonaro contamina o trabalho do Legislativo. Mesmo assuntos técnicos, da cobrança de tributos de importação à chamada saidinha de presos, tiveram o debate prejudicado pela polarização. Não há diálogo nem negociação, apenas confronto estéril. Em um ambiente conflagrado, nada deixou o Congresso tão em ebulição como os desdobramentos da tentativa de golpe de Estado em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Em agosto, deputados bolsonaristas realizaram um motim e tomaram à força a cadeira de presidente da Câmara a fim de pressionar o ocupante do cargo, Hugo Motta (Republicanos-PB), a colocar em votação uma proposta de anistia aos condenados pelos ataques às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, e por tramar contra o regime democrático. A pressão não surtiu o efeito esperado. Na terça-feira 9, foi a vez de um parlamentar governista repetir o gesto e sentar-se na cadeira de Motta para protestar contra a cassação de seu mandato e a votação de um texto que reduz a pena imposta pelo STF aos golpistas. A ação também não deu certo.
Na madrugada da quarta 10, a Câmara aprovou, por 291 votos a favor e 148 contrários, o chamado “projeto da dosimetria”. Relatado pelo deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), o texto diminui as penas, entre outros, dos líderes da ofensiva antidemocrática, incluindo Bolsonaro, sentenciado pelo Supremo a 27 anos e três meses de prisão. A punição imposta ao ex-presidente foi resultado da combinação de cinco crimes. Com a mudança legislativa, ela fica menor porque um dos crimes, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, é incorporado a outro, de golpe de Estado. Na prática, os dois viram uma coisa só, o que faz cair o tempo na cadeia. O projeto também encurta o prazo para que haja progressão no regime de cumprimento de pena. Essas mudanças poderão fazer a condenação de Bolsonaro baixar para 20 anos e nove meses de prisão. Em vez de ficar sete anos em regime fechado, como previsto atualmente, o capitão passaria, no pior dos cenários, pouco mais de três anos sob custódia da Polícia Federal. O mesmo se aplica aos outros sentenciados (veja o quadro).
Essas mudanças de prazo — é importante ressaltar — são estimativas, e o abatimento de pena não é automático. Caberá ao Supremo decidir como será aplicado o benefício a cada condenado, levando em consideração outros fatores, como os agravantes dos crimes cometidos, que variam de um sentenciado para outro. Antes da batalha na Justiça, no entanto, o projeto da dosimetria terá de ser aprovado pelo Senado, o que deve ocorrer na próxima semana, e sancionado por Lula. Alcolumbre já enviou o texto para a Comissão de Constituição e Justiça, onde será relatado pelo senador Esperidião Amin (PP-SC), que não descarta a possibilidade de incluir a anistia na proposta, o que certamente vai incendiar os debates. “É muito grave este retrocesso na sequência de um julgamento histórico, que pela primeira vez condenou os chefes de um atentado contra a democracia, incluindo um ex-presidente e oficiais generais”, escreveu numa rede social a ministra Gleisi Hoffmann, responsável pela articulação política. “O projeto contraria uma decisão em que o STF e o Brasil mostraram independência e soberania, além de fragilizar a legislação que protege a democracia contra tentativas futuras de golpe”, acrescentou.
Desde antes do início do julgamento da trama golpista e da condenação de Bolsonaro, a oposição tentava aprovar uma anistia ampla, geral e irrestrita. Diante da ofensiva, ministros do Supremo, que participam cada vez mais do jogo político, avisaram à cúpula parlamentar que tal iniciativa seria declarada inconstitucional. Em contato com interlocutores da Corte, Hugo Motta e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), o comandante do Senado, rechaçaram abraçar a causa bolsonarista, apesar de aliados do ex-presidente garantirem que ambos prometeram apoiar o perdão aos golpistas. Equilibristas no picadeiro da polarização, Motta e Alcolumbre mostraram-se dispostos apenas a patrocinar a tramitação do projeto da dosimetria, que mesmo assim ficou em banho-maria. A questão parecia esquecida até o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o primogênito do ex-presidente, anunciar ter sido escolhido pelo pai para disputar a Presidência. A declaração desagradou ao mercado e ao Centrão, que preferem a candidatura do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, para enfrentar Lula.
Considerado o mais político dos rebentos do capitão, Flávio se colocou no jogo, mas deixou claro que poderia recuar caso um preço fosse pago — segundo ele, a liberdade de Bolsonaro e o nome do ex-presidente nas urnas. Houve, então, uma contraproposta: a redução das penas, que entrou rapidamente na pauta do plenário. Antes da votação, a Câmara foi cenário de novos episódios lamentáveis. Prestes a ter seu processo de cassação votado, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) assumiu a cadeira reservada ao presidente da Casa no plenário, exatamente como fizeram os bolsonaristas, e começou a discursar contra o projeto da dosimetria. Ele alegou que perderia o mandato e ficaria inelegível por oito anos, por ter agredido um militante do MBL nas dependências da Câmara, enquanto Bolsonaro, com a redução das penas, poderia ficar apenas de dois a três anos preso, depois de atentar contra a democracia. Braga também afirmou ser vítima de retaliação do Centrão devido a sua campanha contra o grupo político e o orçamento secreto.
O motim solitário do psolista foi transmitido durante um bom tempo pela TV Câmara e motivou uma reação desastrada. Uma ordem superior determinou que a transmissão fosse interrompida — e que os jornalistas saíssem do plenário. Na sequência, a segurança da Casa retirou Braga à força da cadeira de presidente. Motta não queria que as cenas de truculência viessem a público, mas se esqueceu de que os próprios deputados — do governo e da oposição — fariam questão de divulgá-las nas redes sociais. “Temos que proteger a democracia do grito, do gesto autoritário, da intimidação travestida de ato político. Extremismos testam a democracia todos os dias”, disse Motta quando a rebelião de Braga foi debelada. “Todos os dias a democracia precisa ser defendida. Determinei também a apuração de possíveis excessos em relação à cobertura da imprensa.” O deputado sabe que democracia requer imprensa livre, e não censura, mas esse é o menor de seus problemas no exercício da função.
Eleito em fevereiro para chefiar a Câmara com o apoio do PT de Lula e do PL de Bolsonaro, Motta já enfrentou dois motins e vê sua capacidade de comando contestada de forma sistemática. Mesmo aliados dele criticam em conversas reservadas sua atuação, que não estaria à altura do cargo. Pressionado por todos os lados, o deputado submeteu ao plenário, além da cassação de Braga, o parecer que recomendou a perda do mandato da deputada Carla Zambelli (PL-SP), que fugiu para a Itália, onde acabou presa, após ser condenada a dez anos de prisão pelo STF por invasão ao sistema do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O plano de Motta foi dar uma no cravo petista e outra na ferradura bolsonarista. Ele anunciou ainda a intenção de votar a cassação do deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), que fugiu para os Estados Unidos depois de o Supremo condená-lo a dezesseis anos de prisão no processo da trama golpista. Também está na fila da guilhotina o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que se autoexilou nos Estados Unidos para conspirar contra o governo e a economia e pode perder o mandato por faltar ao trabalho no Brasil. Em votação realizada na madrugada de quinta, 11, os parlamentares livraram Braga e Zambelli da cassação.
O embate político faz parte do jogo democrático. O problema é quando ele interdita a tramitação de projetos de interesse do país. A Câmara ainda não votou a “PEC da Segurança Pública”, apesar de governistas e oposicionistas apostarem no texto para tentar conquistar eleitores. A Casa também demorou a analisar um projeto contra os maiores sonegadores de tributos do país, que foi finalmente votado, também na quarta-feira, diante da necessidade de os deputados mostrarem serviço à sociedade. Com a eleição cada vez mais próxima no horizonte, certas tensões tendem a ganhar tração, e não apenas entre agremiações partidárias ou esquerda e direita. Executivo, Legislativo e Judiciário parecem cada vez mais empenhados em participar de quedas de braço em torno de prerrogativas e poder. À frente do Senado, Davi Alcolumbre dificultou o quanto pôde a aprovação do nome do advogado-geral da União, Jorge Messias, para o Supremo. A indicação só será votada em 2026, prazo dado para que Lula e o senador tentem chegar a um acordo.
Acertos desse tipo não são impossíveis, principalmente quando há bom senso e respeito a limites institucionais. O decano do Supremo, Gilmar Mendes, por exemplo, baixou a fervura de uma tensão incipiente ao suspender a restrição que havia imposto a pedidos de impeachment de integrantes do tribunal. Foi uma concessão aos apelos do Senado, responsável por julgar o tema. Ao recuar de sua própria canetada, Mendes abriu espaço para uma saída negociada entre as partes, que pode ser sacramentada já na próxima semana. Trata-se de uma prova de que, com diálogo, negociação e entendimento é possível tocar pautas de interesse do país e evitar uma crise generalizada entre os Poderes no ano eleitoral de 2026.
Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2025, edição nº 2974

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