Condenação de Ramagem deve aumentar ainda mais as tensões entre Congresso e STF
Muito dessa aparente disputa de poder tem a ver com corporativismo e o instituto de autoproteção dos parlamentares

Em janeiro de 2024, quando as investigações sobre a trama golpista ganhavam tração, ministros do Supremo Tribunal Federal foram alertados sobre o descontentamento generalizado diante das operações policiais nas casas e gabinetes de parlamentares. Importantes caciques do Congresso reclamavam que as ações eram desproporcionais e enviaram um recado claro: se elas descambassem para prisões, o Parlamento se mobilizaria para derrubar a ordem — uma atitude que certamente faria escalar a tensão entre os poderes. Não houve, de fato, as temidas cautelares, mas nem por isso a relação foi pacificada. De lá para cá, deputados e senadores acumularam iniciativas para conter o avanço de ações criminais — como ficou evidenciado durante a votação da PEC da Blindagem, na última semana — e, ao mesmo tempo, puseram em prática manobras para contornar decisões judiciais. A condenação de Alexandre Ramagem (PL-RJ), o único congressista envolvido no inquérito sobre a tentativa de golpe, pode ser o estopim da rebelião prometida no passado.

Desde o início, o processo contra o deputado se transformou em um cabo de guerra entre o Parlamento e o Supremo. Em seu primeiro mandato, Ramagem foi condenado por usar, enquanto chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o aparato estatal para espionar inimigos políticos e para municiar o então presidente Jair Bolsonaro com informações falsas sobre o sistema eleitoral brasileiro. Ele terá de cumprir dezesseis anos de prisão pelos crimes de tentativa de golpe, abolição do Estado democrático e organização criminosa. A pena é a menor entre os oito integrantes do chamado núcleo crucial, graças a uma decisão chancelada por mais de 300 deputados. Aprovada em maio, a resolução previa que a ação penal deveria ser paralisada por completo porque dois dos cinco crimes imputados a Ramagem teriam ocorrido quando ele já estava diplomado — conforme a Constituição, nesses casos há a possibilidade de sustar o processo. O Supremo considerou a reclamação parcialmente procedente, mas manteve o andamento da ação em relação aos crimes cometidos até 2022. A Câmara voltou a reagir e ingressou com uma ação, alegando “violação direta e frontal aos preceitos fundamentais da separação de Poderes e da imunidade parlamentar”. O recurso caiu nas mãos do ministro relator, Alexandre de Moraes, que simplesmente o ignorou.

No último dia 11, ao anunciar o veredicto dos condenados pela trama golpista, Moraes determinou a cassação imediata dos direitos políticos e do mandato de Ramagem, sendo acompanhado por três dos quatro colegas da Primeira Turma. A Câmara será formalmente notificada quando o processo transitar em julgado, o que deve ocorrer em até dois meses. Antes disso, porém, deputados já calculam que o ex-chefe da Abin não será expurgado por uma canetada do Supremo. Ao contrário, o que se trabalha é para que ele seja poupado por completo — por meio da sonhada anistia — ou estique a sua permanência como deputado mesmo quando for preso. Cabe à Mesa Diretora encaminhar a decisão judicial à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que inicia uma representação contra o deputado — o que vai acontecer sem nenhuma pressa. “O fato é que ele está condenado por uma decisão que o Supremo tomou descumprindo uma decisão da Câmara. Mas agora a Câmara tem de seguir a decisão do Supremo? Não existe um poder acima de outro”, afirma um bem posicionado parlamentar. A ideia é deixar o caso em estado de animação suspensa.
Por esse cálculo político, Ramagem pode passar a cumprir pena em regime fechado, o que lhe impedirá de comparecer à Câmara, e ter seu processo arrastado por um longo período até que ele atinja o número máximo de faltas. Nesse caso, a perda do mandato é decretada pelo presidente da Câmara, e nem sequer passa pelo crivo do plenário. O resultado seria o mesmo, mas ficaria a mensagem de “não obediência” ao STF.

Muito dessa aparente disputa de poder tem a ver com corporativismo e o instituto de autoproteção dos parlamentares. Preso em março de 2024 como um dos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco, o deputado Chiquinho Brazão teve seu mandato cassado somente em abril deste ano, justamente por atingir o limite de ausências nas sessões — ele, diferentemente, até hoje não foi condenado. Já o processo contra a deputada Carla Zambelli (PL-SP), condenada a dez anos de prisão por invadir os sistemas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), transitou em julgado em junho deste ano. Desde então, a CCJ da Câmara analisa a ordem de perda do mandato expedida pelo Supremo — foragida da Justiça brasileira, Zambelli está presa na Itália, e na última semana apareceu por videoconferência na sessão para acompanhar a oitiva de uma testemunha. Segundo o presidente da comissão, o caso está se arrastando em decorrência dos trâmites jurídicos com o outro país. “Muitas vezes as pessoas querem rapidez e resultado no julgamento, mas a gente não pode entregar isso sem cumprir esses ritos, que são exigidos pela lei”, afirma Paulo Azi (União Brasil-BA).

Além da figura do deputado-presidiário, a batalha entre os poderes deve trazer em breve a criação do deputado internacional. Numa manobra para não ser cassado por faltar às sessões, o PL indicou Eduardo Bolsonaro (PL-SP) como líder da minoria, resgatando um ato de 2015 que permite a parlamentares que exercem a função de liderança o direito de não registrar presença no painel de votações. O filho Zero Três de Jair Bolsonaro está desde março nos Estados Unidos, de onde articula sanções americanas, e corria o risco de ser cassado por ausência. Tudo indica que agora não será mais. Os casos vão se enfileirando. O Conselho de Ética da Câmara arquivou a denúncia por rachadinha contra o deputado André Janones (Avante-MG), que admitiu ter embolsado dinheiro público repassado aos assessores e firmou um acordo com a Justiça. Da mesma maneira, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), que se envolveu numa briga com um militante do MBL, conseguiu sobrevida em seu processo de cassação, suspenso por Motta em abril por dois meses — e jamais retomado.

O discurso comum a todos os que são alvos de investigação: são inocentes sofrendo perseguição da Justiça. “Se fazem isso com um parlamentar, até com um ex-presidente, podem fazer com qualquer outro parlamentar também”, disse Ramagem em vídeo publicado após a condenação. Esse tipo de argumento tem a simpatia de um contingente expressivo do Congresso. Como se sabe, há pelo menos oitenta inquéritos destinados a apurar irregularidades envolvendo as emendas parlamentares. Na última semana, o ministro Flávio Dino cobrou um posicionamento da Procuradoria-Geral da República sobre as ações — o que, na prática, se reflete na tramitação dos processos e permite que muitos deles comecem a ser julgados em breve. Ou seja, perspectivas de futuras prisões no horizonte — ou uma nova “violação direta e frontal aos preceitos fundamentais da separação de Poderes e da imunidade parlamentar”.
Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2025, edição nº 2962