Como o governo Lula prepara reação contra as sanções dos Estados Unidos
No caso de um conflito maior, o plano será tentar colher dividendos eleitorais classificando o caso como uma afronta à soberania nacional

Faltavam pouco mais de oito meses para a eleição que daria a Donald Trump um segundo mandato quando o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) começou a falar de uma provável retaliação contra Alexandre de Moraes caso os republicanos voltassem à Casa Branca. Àquela altura o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) já havia tornado pública a existência de um plano macabro para assassiná-lo em uma emboscada, e as investigações sobre uma suposta tentativa de golpe fechavam o cerco contra Jair Bolsonaro. Ao lado de congressistas americanos, o filho do ex-presidente reclamava de um suposto avanço do Judiciário brasileiro contra a liberdade de expressão nas redes sociais e alegava existirem presos políticos no país. Meses depois, o parlamentar fez chegar a integrantes do governo e do STF um alerta que teria ouvido do próprio republicano. “O juiz Moraes é um problema meu”, teria dito Donald Trump. Parecia somente uma bravata, mas a percepção mudou nos últimos dias. O presidente da República e os ministros do Supremo estão preocupados com as pressões que começam a vir dos Estados Unidos e traçam estratégias para enfrentar um provável conflito. Alvo agora de uma investigação no Supremo por suas atividades em território americano, Eduardo Bolsonaro dobrou a aposta contra o STF, trata Moraes como um “tirano” e aposta todas as suas fichas na possibilidade de o governo Trump tirar do papel medidas duras contra autoridades brasileiras.

Eventuais sanções dos Estados Unidos, quaisquer que sejam, contra Alexandre de Moraes ou outros alvos serão inicialmente tratadas como uma afronta à soberania nacional. É assim que o governo brasileiro planeja reagir caso as ameaças feitas pelo governo americano se concretizem. E tudo indica que elas serão concretizadas. Na quarta-feira 28, o secretário de Estado, Marco Rubio, anunciou que vai restringir a entrada no país de estrangeiros que tenham praticado qualquer ato de censura contra cidadãos americanos. O nome de Alexandre de Moraes não foi citado — e nem precisava. Dias antes, Rubio já havia dito que eram “grandes” as chances de Moraes estar entre os alvos.
Em depoimento na Câmara, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, tentou minimizar o problema. “A política de visto é de cada Estado e o Estado toma a decisão de conceder ou de não conceder”, afirmou. O governo sabe que a questão é bem mais complexa. Na semana passada, depois da fala de Rubio, o ministro e Lula conversaram pelo telefone. Os detalhes do diálogo não foram divulgados, mas um interlocutor conta que ficou acertado entre os dois que qualquer sanção imposta pelos Estados Unidos aos integrantes do Supremo será tratada como uma ingerência externa em assuntos nacionais. Embora não admita, o Planalto está preocupado com as consequências que esse embate pode provocar. Há também um extremo receio de que as medidas do governo americano, dependendo da abrangência, possam atingir outros personagens e provocar uma grande confusão.

Sob sigilo, o corpo jurídico do governo avalia que, no pior cenário, uma punição a Alexandre de Moraes de imediato se estenderia aos aplicativos de big techs americanas utilizadas pelo magistrado, programas de internet banking e cartões de crédito. Ou seja, o ministro não poderia ter uma conta de e-mail no Google nem ter uma conta corrente em agentes financeiros que operam com a moeda americana. A medida seria extensiva ao escritório de advocacia de familiares do juiz e a uma empresa de consultoria e treinamento que tem a esposa e os filhos dele como sócios. As sanções também podem atingir os demais ministros do STF — onde Bolsonaro e outros trinta acusados de golpe são julgados — que endossaram decisões individuais de Moraes. O diagnóstico ganhou contornos de potencial crise sistêmica, relataram a VEJA integrantes do Executivo, porque a lista de possíveis atingidos, a depender da extensão da canetada de Donald Trump, pode incluir ainda grandes bancos brasileiros que, por operarem nos Estados Unidos, também estariam sujeitos ao ordenamento jurídico americano.
O temor é que Trump invoque a temida Lei Magnitsky, que prevê restrições patrimoniais, como o congelamento de ativos, a cidadãos estrangeiros envolvidos em corrupção ou em grave violação de direitos humanos. Para alas trumpistas mais radicais, Alexandre de Moraes infringiu essa última norma ao decretar “prisões arbitrárias” e impor restrições a empresas americanas, a cidadãos americanos e a brasileiros naturalizados americanos. “Os impactos das eventuais sanções ao ministro Alexandre são muito maiores do que se imagina à primeira vista”, resume um integrante do governo. O cenário mais catastrófico traçado pelo Planalto inclui punições a outros ministros do STF e também ao procurador-geral Paulo Gonet, que, por solicitação do líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias, pediu abertura de inquérito para apurar se as ações de Eduardo Bolsonaro caracterizariam uma tentativa de constranger a Justiça.

Além da movimentação em território americano do filho de Jair Bolsonaro, a pressão sobre a Justiça brasileira ganha força com outro poderoso apoio. Dono do X e aliado de primeira hora do governo Trump, o bilionário Elon Musk alimenta há meses um embate direto com o ministro. Moraes ordenou que a rede social bloqueasse perfis de bolsonaristas. Depois de uma sequência de descumprimentos de decisões, o X foi retirado do ar no Brasil por 39 dias, e Musk acabou incluído no inquérito que investiga a atuação de milícias digitais contra autoridades brasileiras. O X e outras big techs serão novamente temas do STF na próxima quarta, 4, quando o Supremo irá retomar o julgamento que deve estabelecer regras para a responsabilização dessas empresas no país. Nos bastidores de Brasília, o anúncio da agenda não foi mera coincidência. Seria um recado de que a Corte não vai se intimidar diante das pressões sobre a Justiça brasileira.

Na tentativa de conter a escalada do problema, Lula determinou que Mauro Vieira e a embaixadora do Brasil em Washington, Maria Luiza Viotti, usassem os canais diplomáticos, mas já faz cálculos prevendo possíveis ganhos eleitorais no caso. O presidente vislumbrou no enfrentamento público uma janela de oportunidade para colher dividendos, especialmente em período de baixa popularidade. Na briga comercial que virou o mundo de cabeça para baixo, porém, tudo de que o país não precisava neste momento, diz Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Washington, era que o governo chamasse para si a responsabilidade de resolver um cabo de guerra que não é dele. “Em essência, esse é um problema entre Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes. A se confirmarem as sanções, o governo vai fazer o quê? Romper relação com os Estados Unidos?”, afirma. Na hipótese de um confronto maior, que terá consequências imprevisíveis, a certeza mesmo é a de que o Brasil não tem nada a ganhar com isso.
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2025, edição nº 2946