Clima de vale-tudo e animosidade segue firme no segundo turno das eleições
Com disputas acirradas, candidatos deixam propostas de lado e extrapolam na dose de ataques, tentando aumentar a rejeição ao adversário
A primeira rodada de debates no segundo turno de capitais importantes transformou-se num festival de acusações, num nível que chama a atenção mesmo de quem só espera o pior das campanhas brasileiras. Em João Pessoa, o ex-ministro Marcelo Queiroga (PL) tinha um minuto para se apresentar ao eleitor, mas gastou metade do tempo para fustigar o adversário, citando a operação que prendeu a mulher do prefeito Cícero Lucena (PP), por aliciamento ilegal de eleitores e suspeita de envolvimento com uma facção. A acusação de ligações com grupos criminosos, o PCC no caso, também tomou boa parte das falas de Guilherme Boulos (PSOL) em São Paulo contra seu adversário, Ricardo Nunes (MDB), que contragolpeou chamando o rival de invasor de propriedade e gente que “corre da polícia”. Em Fortaleza, Evandro Leitão (PT) explorou comentário de seu oponente, André Fernandes (PL), no vídeo em que Jair Bolsonaro ameaça a deputada Maria do Rosário (PT): “Cada compartilhamento desse vídeo aqui é um murro bem dado na boca dessa sebosa”, disse o hoje candidato a prefeito. Fernandes rebateu dizendo que violento era Leitão, que, quando era cartola do clube de futebol Ceará, invadiu o campo e agrediu um juiz. Em Curitiba, Cristina Graeml (PMB) acusou a gestão da qual o adversário, Eduardo Pimentel (PSD), é vice-prefeito de colocar livros com temática LGBTQIA+ nas escolas — e ouviu do oponente que ela é célebre por espalhar fake news sobre vacinas. Os exemplos mostram que, se no primeiro turno a campanha foi marcada por atos condenáveis de violência, com direito a soco e cadeirada ao vivo na TV, o clima agora é de guerra total, com ataques variados, inclusive pessoais, em detrimento da apresentação de propostas para gerenciar as cidades.
Parte da lógica se deve a uma cartilha informal que norteia os marqueteiros políticos: a de que o segundo turno é uma nova eleição. Se na etapa inicial o candidato tem de se destacar em meio aos concorrentes apresentando seu perfil, ideias e propostas, na segunda a lógica é de confronto direto ou, na linguagem do futebol, de mata-mata. O raciocínio é fundamentado na tese de que os eleitores que se interessaram pelo perfil, ideias e propostas do candidato já votaram nele no primeiro turno, e no segundo a busca é por aqueles que votaram em branco, nulo, se abstiveram ou votaram no concorrente. Em muitos casos, o voto no segundo turno é por exclusão, no “menos pior”. Por isso, um dos principais objetivos é aumentar a rejeição do adversário, nem que seja com brigas de rua e golpes abaixo da linha da cintura. “Nessa fase é o que minha mãe dizia: tem que balançar a roseira, ou seja, derrubar as folhas e mostrar os espinhos”, afirma o marqueteiro Sidônio Palmeira.
O aumento da temperatura, em grande parte, se deve ao equilíbrio das disputas. Em Fortaleza, há pesquisas que apontam um empate absoluto entre Leitão e Fernandes, com 50% dos votos válidos para cada um. Em Manaus, a diferença entre Capitão Alberto Neto (PL) e o prefeito David Almeida (Avante) está na margem de erro. Os dois aumentaram o tom das acusações mútuas. Alberto Neto diz que Almeida é um dos prefeitos com mais denúncias de corrupção na história do Amazonas, fazendo referência a casos que citam a irmã, a mulher e a sogra do adversário. Almeida rebate dizendo que o rival já foi investigado por extorsão de 5 000 reais de um motorista da Uber (veja o quadro). Também há duelos equilibrados em Belo Horizonte, Curitiba, Cuiabá, Goiânia e Natal. “Nas cidades onde a disputa está mais acirrada, a vitória representa muito mais do que a eleição do governante, mas a derrota de um campo político”, lembra Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria.
Outro componente é a ideologização do debate, que ficou em segundo plano no primeiro turno e volta com força na etapa decisiva. Em duas capitais, Fortaleza e Cuiabá, há um embate direto entre PT e PL, os dois maiores partidos do país e os opostos no espectro ideológico. Não à toa, Lula foi a Fortaleza no início do segundo turno, porque é questão de honra para a esquerda conquistar a capital mais populosa do Nordeste depois de um primeiro turno em que seu desempenho ficou muito aquém do esperado. Lá, o presidente da República perdeu o pudor de entrar no vale-tudo ao lembrar em discurso que o bolsonarista André Fernandes tem um vídeo célebre no qual ensina a eliminar os pelos das partes íntimas. “Única virtude é mostrar depilação”, disse Lula.
Já Bolsonaro foi, na segunda 14, a Cuiabá, onde seu candidato, Abilio Brunini (PL), trava uma briga acirrada com o representante do PT, Lúdio Cabral. O ex-presidente também foi a Manaus e João Pessoa e, no sábado 19, sua agenda prevê em Belo Horizonte a “motociata da vitória”, em apoio a Bruno Engler, candidato do PL que briga contra o prefeito Fuad Noman, do PSD — o PT está ao lado dele na tentativa de reeleição. A volta do confronto ideológico também fez com que a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro , discreta no primeiro turno, iniciasse uma turnê com a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) por cidades de Norte a Sul do país.
Não são apenas os extremos ideológicos que se engalfinham neste momento. Em algumas cidades, o duelo se tornou extremamente ácido exatamente por ter duas candidaturas à direita. Um dos principais exemplos é Curitiba, onde a chegada surpreendente de Cristina Graeml (PMB) ao segundo turno contra Eduardo Pimentel (PSD) transformou o debate numa contenda para ver quem é mais conservador ou de direita. Graeml, que chegou a ser investigada por divulgar fake news na pandemia foi alavancada por pautas como ideologia de gênero, Venezuela e descriminalização de aborto e drogas, temas que não passam nem perto da alçada de um prefeito. Pimentel tenta se contrapor apoiado no fato de também ser um candidato conservador e no seu maior estofo político — é apoiado pelo prefeito Rafael Greca e pelo governador Ratinho Jr., ambos do PSD. Mas não deixou de lembrar que o vice de Graeml, Jairo Filho, tem acusações pesadas na polícia e na Justiça sobre a prática de golpes financeiros contra investidores e empresários. Em Goiânia, há debate semelhante entre Sandro Mabel (União Brasil), apoiado pelo governador Ronaldo Caiado (União Brasil), e Fred Rodrigues (PL), aliado de Bolsonaro. A campanha entre quem é mais confiável para o eleitor conservador nessas capitais colocou Bolsonaro em lados opostos aos de Ratinho Jr. e Caiado, o que é um risco à união da direita em 2026, já que os dois governadores sonham em ser uma alternativa desse espectro ideológico ao Palácio do Planalto.
Outro ponto que contribui para a agressividade das campanhas é a influência cada vez maior das redes sociais. Candidatos mais jovens e que fizeram fama na internet, como o ex-coach Pablo Marçal (PRTB), que chegou em terceiro na eleição em São Paulo, usam a lógica dos “cortes” no Instagram, com vídeos curtos de declarações polêmicas ou ofensas aos adversários, com o objetivo de viralizar. André Fernandes, por exemplo, tem 26 anos e tornou-se conhecido por vídeos no YouTube contra o PT e Dilma Rousseff. “Os candidatos youtubers sempre tiveram discursos mais agressivos, fazendo o algoritmo caminhar de forma que aumente o número de seguidores. Isso serve para Belo Horizonte e Fortaleza. Eles vieram do confronto, surgiram no processo de radicalização e não sabem fazer política de outra forma”, avalia Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. A influência das redes sociais também contamina a campanha em outras plataformas, como o rádio. Boulos, por exemplo, martelou durante dias uma repetição da frase “Digite no Google: Ricardo Nunes, chefe de gabinete, PCC”, tentando levar o ouvinte a buscar notícias sobre um integrante do governo municipal que teria ligação com o chefe da facção, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola — Nunes já respondeu que é um servidor de carreira, que está há anos na burocracia da máquina paulistana e não foi indicado por ele. No debate da Band, em meio à postura incisiva de Boulos, Nunes chegou a abraçá-lo e avisá-lo: “Você não vai me intimidar”.
Na história recente, alguns episódios ocorridos na reta final das eleições entraram para a antologia das baixarias. Na disputa pela prefeitura do Rio em 2020, Marcelo Crivella afirmou que a vitória de Eduardo Paes resultaria em pedofilia nas escolas. O ataque vil e absurdo não impediu a vitória dele (Paes, aliás, foi reeleito neste ano). No mesmo ano, em Recife, a coligação de João Campos (PSB) foi proibida pela Justiça Eleitoral de distribuir panfletos dizendo que sua rival, a prima Marília Arraes, defendia a legalização das drogas, o aborto e a ideologia de gênero. Dizia ainda que ela era do PT, “que persegue os cristãos em todo o Brasil”. Dentro da tradição política nacional de passar um pano para as pendengas do passado em nome dos interesses do presente, agora Campos foi reeleito com apoio do PT e discurso alinhado a Lula.
Ainda que golpes abaixo da linha da cintura não sejam exatamente uma novidade, o nível mostrado neste início de segundo turno preocupa, pois os ataques mútuos tomam o espaço do debate de questões relevantes a ser enfrentadas nas cidades. Nos últimos dias, a população de São Paulo foi mais uma vez exposta à degradante situação de ficar dias sem energia elétrica por causa de mais um apagão (leia a reportagem na pág. 48). No início do ano, os gaúchos viveram um drama de proporções inéditas, com pessoas ilhadas e desabrigadas, casas e empresas destruídas e infraestrutura arruinada por causa de enchentes. Há poucas semanas, o país ficou encoberto pela fumaça das queimadas, um espetáculo não só triste, mas de grande impacto na saúde e na rotina das pessoas. Nesse contexto, é de se lamentar que o segundo turno tenha enveredado pela tentativa da desqualificação alheia e do rebaixamento do confronto. O debate em curso está muito aquém do que demanda a sociedade.
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915