Carta ao Leitor: Os donos da verdade
Alimentadas pela engrenagem ácida e daninha das redes sociais, informações precárias, frágeis, sem confirmação alguma, são tratadas como certezas absolutas

Não é de hoje, como revela o fascinante livro Galileu e os Negadores da Ciência, do israelo-americano Mario Livio, tema de uma reportagem desta edição de VEJA, que o conhecimento sofre permanente assédio da fé, dos radicalismos e da ignorância. Em seu tempo, nem mesmo o genial astrônomo italiano foi capaz de impedir que o sistema de Copérnico, segundo o qual a Terra gira em torno do Sol, recebesse a condenação religiosa. Levado ao Tribunal do Santo Ofício em 1633, Galileu Galilei foi acusado de heresia ao tentar provar a teoria heliocêntrica, sendo obrigado a negar suas convicções. Diz a lenda que, após desmentir a si mesmo, o cientista ainda teria murmurado: “E pur si muove”, algo como “ela, no entanto, se move”. Lamentavelmente, em pleno século XXI, as forças do atraso ainda continuam a ter influência em personagens da política e certas correntes evangélicas, manipulando milhões de incautos — uma massa ignara que continua a achar que a vacina é perigosa ou que a Terra é plana.
E pur si muove é o que precisa ser dito, sempre e cada vez mais, diante de um momento preocupante da sociedade, em que predominam tais insanidades e não os fatos. Alimentadas pela engrenagem ácida e daninha das redes sociais — e não há aqui aversão aos avanços da tecnologia, fundamentais —, informações precárias, frágeis, sem confirmação alguma, e muitas vezes evidentemente mentirosas, são tratadas como certezas absolutas. Uma pesquisa de Harvard, como mostra a reportagem da página 58, revela que cresceu recentemente o movimento antivacina, típico exemplo do chamado efeito Dunning-Kruger, batizado a partir do trabalho de seus idealizadores, os psicólogos David Dunning e Justin Kruger. Eles demonstraram cientificamente que pessoas com pouco (ou nenhum) domínio sobre um assunto tendem a achar que sabem mais do que os especialistas. São os donos da verdade, delirantes, que seriam apenas histriônicos, caso não representassem um perigo para a democracia e até para a vida das pessoas.
A rigor, só há um caminho na contramão desse comportamento abominável: a busca pelo conhecimento. Numa sociedade desenvolvida, o pensamento científico não pode ser desprezado, dando espaço a opiniões tolas, sem fundamento, invariavelmente radicais e baseadas em teorias da conspiração. De forma anacrônica, estamos testemunhando esse processo atualmente — na política e no combate ao coronavírus. Portanto, é preciso persistir na direção correta para evitarmos um danoso retrocesso civilizatório. No jornalismo, essa atitude se traduz em responsabilidade, seriedade, profissionalismo e qualidade. Há mais de cinquenta anos, VEJA segue esses valores, praticando uma permanente reflexão e análise acurada a respeito das notícias e revelações de interesse público. Neste momento tão delicado, em que a ignorância precisa ser combatida, renovamos com nossos leitores o compromisso de continuar a fazê-lo. Hoje e sempre.
Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741