Carta ao Leitor: A guerra dos poderes
Desde a posse de Jair Bolsonaro (e, ressalte-se, por iniciativa dele), os limites entre Executivo, Legislativo e Judiciário vêm sendo testados no Brasil

Desde a antiguidade, vários pensadores se desdobraram na elaboração do sistema de governo ideal para a condução de uma nação. Nenhum deles, porém, marcou tanto a civilização ocidental, e a maneira pela qual vivemos até hoje, como o idealizado por Charles Montesquieu (1689-1755). Em sua obra-prima, O Espírito das Leis, o filósofo francês propôs uma reformulação das instituições políticas baseada na Teoria dos Três Poderes — Legislativo, Executivo e Judiciário. De acordo com seu raciocínio, a solução tripartite acabaria com os desmandos do regime absolutista e deveria ser adotada — como foi — para criar estabilidade, harmonia e crescimento econômico dos países. Ao propor essa segmentação, estabelecendo a divisão de responsabilidades, Montesquieu ponderou que cada poder não poderia ser desrespeitado nas funções que deveria cumprir. Caso contrário, o tão desejado equilíbrio desandaria e a democracia entraria em risco.
Entre vários períodos de avanços e retrocessos, o Brasil parecia ter atingido uma estabilidade democrática e harmonia entre poderes a partir de 1989. Mesmo em situações como os impeachments de dois presidentes e trocas de mandatários com posições ideológicas bastante conflitantes, as instituições funcionaram e o respeito às regras mostrou a maturidade de uma nação. Nos últimos três anos, infelizmente, o caminho sugerido pelo pensador francês parece correr riscos. Desde a posse do governo Jair Bolsonaro (e, ressalte-se, por iniciativa dele), os limites entre os poderes vêm sendo testados. Primeiro, foi a rusga com o Legislativo, mas o atual ocupante do Palácio do Planalto recuou e fechou com o Centrão. Em seguida, preferiu concentrar seus ataques ao Supremo Tribunal Federal, uma atitude extremamente perigosa, ainda mais em um ano de eleição com forte polarização.
Embora o presidente tenha dito algumas vezes que respeitará o resultado do pleito, inclusive numa entrevista gravada a VEJA, cresce o receio de que posturas mercuriais e a instabilidade permanente — que vai da concessão de um indulto a um condenado a ameaças de que não cumprirá decisões judiciais — sejam um ensaio para um ato antidemocrático. O cenário piora ainda mais quando se vê claramente o uso das Forças Armadas em questões políticas, como no permanente descrédito nas urnas eletrônicas. Tal envolvimento, não previsto pela Constituição e de triste memória para todo o país, é um elemento muito perturbador. Vale lembrar que os erros também acontecem no lado do Judiciário. As declarações do ministro Barroso sobre as Forças Armadas num evento acadêmico do exterior eram, sim, dispensáveis. Contudo a capacidade de reconhecer os equívocos e buscar a convergência é maior em homens públicos de alto gabarito como o ministro Barroso. Neste momento tão sensível, o Brasil necessita de temperança e da sabedoria de todos os poderes para que continuemos no modelo tão bem desenhado por Montesquieu. Leia mais detalhes sobre o tema na reportagem que começa na página 24.
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787