O casal Ernani Fernandes Barbosa Neto e Thais Raposo do Amaral Pinto Chaves é a prova de que, mais do que tumultuar o ambiente político e radicalizar posições já extremadas, o ramo das notícias falsas e sensacionalistas é um filão lucrativo. Fernandes e Thais são donos do Folha Política, o canal bolsonarista que mais tem faturado com a divulgação desse tipo de conteúdo. Não por acaso, virou um dos principais alvos de um forte cerco promovido pela Justiça contra as fake news, principalmente as destinadas a pôr em xeque a confiabilidade do sistema eleitoral. No curso da investigação destinada a combater o problema, cifras fornecidas ao Tribunal Superior Eleitoral e obtidas com exclusividade por VEJA revelam que, de 2019 a agosto de 2021, o Folha Política recebeu mais de 3 milhões de reais do YouTube.
Parte considerável desse valor é obtida graças ao impressionante alcance de suas peças. Inscrito na plataforma de vídeos desde maio de 2016, o canal atingiu números dignos de fenômeno da internet: 2,58 milhões de inscritos e mais de 1 bilhão de visualizações em seus cerca de 13 000 vídeos. Inicialmente lavajatista, antipetista e defensor de figuras conservadoras, como o ex-senador Magno Malta, o Folha Política aderiu ao bolsonarismo em 2018, sobretudo após o atentado à faca sofrido por Bolsonaro em Juiz de Fora (MG). Malta, inclusive, aparece num vídeo do canal, destacado em relatório da PF, afirmando que Bolsonaro “desmascarou” Luís Roberto Barroso, o atual presidente do TSE, enquanto o ministro tentava esconder um ataque hacker aos principais sistemas da Corte — uma informação falsa. Nos últimos tempos, o Folha Política se dedica principalmente à defesa do governo na CPI da Pandemia e também bate forte na tecla a favor do “voto impresso e auditável”.
O primeiro golpe da Justiça contra essa indústria de lorotas ocorreu em agosto, desfechado pelo ministro Luis Felipe Salomão, do TSE, a pedido da Polícia Federal, no âmbito de um inquérito administrativo sobre ataques ao sistema eleitoral. A medida consistiu na suspensão temporária da remuneração paga a onze canais, entre eles, o Folha Política, por plataformas como YouTube, Instagram, Twitter e Facebook. Desde então, o dinheiro é recolhido e vem sendo depositado numa conta judicial. Dentro da avaliação de que secar a fonte de rendimento que sustenta as fake news é o caminho mais eficiente para cortar o mal pela raiz, o TSE estuda dar um passo ainda maior na mesma linha. A ideia é criar uma regra geral para bloquear automaticamente os pagamentos (ou desmonetizar, no jargão dos negócios digitais) a todos os canais que façam ataques ao sistema eleitoral, proibindo que, em 2022, obtenham lucro com a propagação de mentiras. No relatório recebido recentemente pelo TSE, somados, os onze canais que estão na mira receberam mais de 10 milhões de reais do YouTube de janeiro de 2019 a agosto deste ano. O valor não inclui os pagamentos feitos por outras redes, como o Facebook.
Fechar essa lucrativa torneira é uma medida que, naturalmente, vem provocando gritaria entre a turma que transformou as fake news num negócio milionário. Os donos dos onze canais que, por ora, tiveram seus rendimentos suspensos, alegam sofrer censura ao ter seus sites inviabilizados financeiramente. As autoridades já ensaiam sua defesa pública, sustentando que não estão retirando do ar nenhum conteúdo nem vetando sua divulgação, apenas barrando que os ataques às instituições gerem lucro. O plano no TSE, num primeiro momento, é “sensibilizar” plataformas com o YouTube para que façam uma autorregulação, incluindo em sua política interna a proibição de ataques ao sistema eleitoral brasileiro sob pena de o infrator ter seu canal imediatamente desmonetizado. De acordo com autoridades que atuam no inquérito da Corte Eleitoral, algo semelhante já acontece quando os produtores de conteúdo falam em suicídio, por exemplo — entende-se que esse tema, por uma questão humanitária, não deve render dinheiro. Nos Estados Unidos, atento ao tumulto gerado pela máquina de mentiras do ex-presidente Donald Trump, o YouTube já veta que se alegue nos vídeos que o resultado da eleição derivou de votos de pessoas mortas ou de depósito de cédulas falsas — fatos comprovadamente falsos. Para implementar algo parecido por aqui, o TSE iniciou em agosto uma série de reuniões semanais entre o ministro Salomão, a delegada da Polícia Federal Denisse Rosas Ribeiro e representantes do YouTube, do Facebook e de outras plataformas. Caso a proposta de autorregulação não avance, o tribunal estuda editar uma norma, tornando obrigatória a adoção desse bloqueio financeiro sempre que necessário. Para possíveis questionamentos futuros na Justiça a respeito dessa política, conta-se com o apoio majoritário dos ministros do STF, instância que poderá ser chamada a decidir sobre a questão.
A negociação em curso com as big techs não está sendo fácil. Os representantes dos gigantes de tecnologia se mostram solícitos nos contatos, mas não demonstraram até agora muita boa vontade em aceitar um mecanismo que atinge também suas fontes de receitas. O YouTube, que representa a maior fatia embolsada pelos canais alvos do TSE, informou a VEJA que, “no momento, não há nada específico com relação a atualizações nas políticas ligadas ao processo eleitoral”. As autoridades trabalham com o dado de que as plataformas ficam, em média, com 30% das receitas geradas pela monetização dos canais, e defendem que esse “dinheiro fronteiriço”, gerado no limite da ilegalidade, deva deixar de interessar às companhias. O que se vê, no entanto, é que elas oferecem a cada dia mais ferramentas para os perfis auferirem lucro. Além da monetização tradicional, que repassa parte da receita proveniente de anúncios com base no número de visualizações e de propagandas exibidas, há outras formas de capitalizar que rendem muito mais: as doações diretas para os donos dos canais. No YouTube, por exemplo, pode-se pagar para ter seu comentário destacado no chat de uma live. Ou comprar figurinhas que saltitam nessas transmissões. Doações diretas aos perfis representam hoje, aliás, a principal preocupação das autoridades, pois são quase irrastreáveis. Primeiro, porque os valores passam pela conta das plataformas antes de chegar ao bolso dos responsáveis pelos canais. Segundo, porque qualquer pessoa que queira driblar o rastreamento pode comprar um cartão pré-pago, como os gift cards, carregá-lo com o valor desejado e utilizá-lo para fazer uma doação. Assim, mesmo que quebrem o sigilo dos espalhadores de fake news, os investigadores não conseguem identificar a verdadeira origem da “doação” — um mundo de possibilidades para a lavagem de dinheiro, segundo a PF e o Ministério Público. Uma das hipóteses, que ainda carece de provas, é que servidores de políticos estejam “doando” parte de seus salários a canais acertados previamente, numa espécie de “rachadinha virtual”.
É seguindo o rastro dessas doações, com eventual ajuda das plataformas, que o TSE pretende avançar. A partir dos relatórios financeiros entregues pelas empresas, a PF deve estabelecer qual foi o faturamento dos canais no período específico do recrudescimento dos ataques ao sistema eleitoral — de maio a agosto deste ano. A expertise para esse tipo de apuração surgiu com a abertura do inquérito dos atos antidemocráticos pelo STF, em abril de 2020. Naquele caso, o procurador Aldo de Campos Costa, que atua na Procuradoria-Geral da República, calculou que doze sites bolsonaristas — dos quais oito também figuram na atual investigação do TSE — ganharam, entre 2018 e 2020, 4 milhões de reais no YouTube. A comparação com os mais de 10 milhões de reais informados pelas big techs ao TSE, referentes a período posterior (de 2019 para cá), espantou as autoridades, que veem um crescimento expressivo do negócio e do alcance das fake news. Levantamento da consultoria Quaest, feito a pedido de VEJA, corrobora a avaliação. Os onze canais que estão na linha de fogo do TSE passaram, juntos, de 32 milhões de visualizações mensais no YouTube, em janeiro, para 73 milhões, em julho — alta de 128% em seis meses, justamente no período de maior crise entre o bolsonarismo e a Justiça Eleitoral.
Além de importunar os donos dos canais, que se dizem censurados, o ímpeto do Judiciário de passar a limpo a máquina de mentiras que tomou conta do debate público tem irritado de maneira particular o presidente Jair Bolsonaro. Ele chegou a editar uma Medida Provisória para dificultar que as plataformas tirassem do ar conteúdos impróprios. Assinada na véspera dos atos de 7 de setembro para agradar a claque, a MP não vingou. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a devolveu ao Planalto na terça 14, ao mesmo tempo que a ministra Rosa Weber, do STF, suspendeu seus efeitos por “aparente inconstitucionalidade”. Tivesse logrado êxito, a MP dificultaria o plano de ação em curso no TSE. Poucas horas antes das decisões de Pacheco e Rosa, Bolsonaro minimizou as fake news, comparando-as a “mentirinhas” contadas para as namoradas. “Fake news faz parte da nossa vida”, disse. “Cai por si só, não precisamos regular isso aí. Deixemos o povo à vontade.”
Parlamentares aliados também criticam as iniciativas de combate às notícias falsas. Alguns, inclusive, já tiveram relações com investigados. Entre dezembro de 2017 e maio de 2018, o então deputado Delegado Francischini (PSL-PR) contratou uma empresa do casal Ernani Fernandes e Thais, do Folha Política, para serviços de “divulgação da atividade parlamentar em meios digitais”. O valor total foi de 28 000 reais, pagos com a cota parlamentar. Fernandes também disse à PF que “desenvolveu uma amizade” com a deputada Bia Kicis (PSL-DF) antes de ela ser eleita — o que ela negou, embora tenha criticado nas redes a desmonetização do Folha Política. Para além dos negócios, outros deputados já republicaram conteúdos do canal, o que ajuda a impulsioná-los, como Carla Zambelli (PSL-SP) e Alê Silva (PSL-MG).
Diferentemente de serem simples e inofensivas mentirinhas, como disse o presidente, as fake news são um fenômeno com poder de ameaçar a democracia. “Houve avanço de técnicas de propaganda computacional que engendra ideias e ‘narrativas’ articuladas pró ou contra determinada causa ou pessoa”, diz Tatiana Dourado, pesquisadora na Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV e no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital. Segundo ela, em poucas horas, às vezes minutos, lorotas digitais bem montadas chegam a públicos numerosos e bastante segmentados on-line. “Isso é muito perigoso no Brasil, porque, diante de quadro político instável e hiperpolarizado, não é preciso muito esforço para que contrafações noticiosas conquistem aderência social. Entre 2014 e 2018, num crescente, o uso de fake news deu a tônica das disputas eleitorais”, completa a especialista. Por bem, depois dessas experiências, o Judiciário parece ter despertado para o tamanho do problema e está buscando prevenir em vez de remediar. Ao menos na Justiça, como se espera, a mentira poderá ter perna curta — e descapitalizada.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756