Câmara: baixaria vira estratégia política e gera reação – mas pode piorar
Comissões viram campos de guerra entre governo e oposição, com troca de farpas, bate-boca e até ameaças de agressão, tudo pensado para obter lucro eleitoral
O governo Lula ainda não tinha completado três meses quando um depoimento dado à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, sinalizou que o embate entre parlamentares de direita e de esquerda tinha tudo para ser explosivo na atual legislatura. Regada a bate-bocas, ironias, gritos e palavrões de ambos os lados, a audiência de março de 2023 foi apenas a primeira de muitas outras promovidas pela Casa em que o decoro passou longe. Na semana passada, André Janones (Avante-MG) e Nikolas Ferreira (PL-MG) trocaram empurrões no Conselho de Ética, órgão responsável justamente por punir quem passa do ponto. No mesmo dia, a deputada mais velha, Luiza Erundina (PSOL-SP), de 89 anos, precisou ser internada após presenciar discussões acaloradas na Comissão de Direitos Humanos. Os episódios fizeram o presidente Arthur Lira (PP-AL) apresentar — e aprovar — uma mudança no regimento interno que irá permitir à Mesa Diretora propor a punição rápida de deputados envolvidos nesse tipo de baixaria com a indicação de suspender mandatos.
O recado de Lira foi dado em tom bastante claro na tarde de terça-feira 11 — e publicamente, por meio de suas redes sociais. “Não podemos mais continuar assistindo aos embates quase físicos que vêm ocorrendo na Casa e que desvirtuam o ambiente parlamentar, comprometem o seu caráter democrático e — principalmente — aviltam a imagem do Parlamento na sociedade brasileira”, escreveu Lira. Ele está coberto de razão , mas terá trabalho para colocar ordem por ali. No mesmo instante, a tragédia climática do Rio Grande do Sul era usada como pretexto para uma troca agressiva de acusações entre o ministro Paulo Pimenta e bolsonaristas na CCJ, a comissão mais nobre da Casa. Nomeado para comandar a Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, o petista virou alvo da tropa de choque formada por Paulo Bilynskyj (PL-SP), Gilvan da Federal (PL-ES), Marcos Pollon (PL-MS), Bia Kicis (PL-DF) e Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Convocado para falar sobre a investigação da PF a respeito de fake news na tragédia, Pimenta respondeu nomeando como exemplos de mentirosos parlamentares como Kicis e Carla Zambelli (PL-SP). Ao final, deixou o recinto sob o coro de “fujão” por não ter aceitado responder às últimas perguntas.
Pimenta apenas engrossou uma lista já extensa de ministros arrastados para esse circo. Até Fernando Haddad (Fazenda), mais moderado do que Pimenta e Dino, foi envolvido no espírito bélico desses colegiados. Na ida à Comissão de Finanças e Tributação em maio, usou várias vezes do deboche para responder aos bolsonaristas, como ao ser questionado por Filipe Barros (PL-PR) sobre o resultado fiscal de 2023. “Esse déficit não é nosso, o filho é teu, tem que assumir, tem paternidade aqui. Faz o exame de DNA”, provocou o ministro, em sessão que contou ainda com afirmações de que, sim, a “terra é redonda” e questionamentos sobre o show de Madonna no Rio. A presença de ministros em comissões é vista como uma oportunidade por parte da oposição para provocar o confronto e aumentar o engajamento nas redes, editando e divulgando a parte do embate que lhes interessa. “A busca por likes tira o foco das discussões reais e desqualifica a política. Esse movimento, puxado pela extrema direita, impede que o Parlamento cumpra uma de suas principais funções, o debate de temas de interesse da população”, avalia Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia da USP. Segundo ele, para haver diálogo, é preciso haver acordo mínimo sobre a verdade dos fatos e também sobre “alguns valores éticos”.
O clima de guerra se acentuou na atual legislatura em razão do avanço da direita na Câmara. Numerosa, a bancada conseguiu o comando de comissões importantes, como Educação, Constituição e Justiça, Segurança Pública e Agricultura, dando tração ao confronto ideológico. Com mais de 11 milhões de seguidores no Instagram, Nikolas Ferreira, por exemplo, é “professor” nessa seara. Presidente da Comissão de Educação, o deputado coleciona vídeos na internet com trechos de suas falas, seja dos grupos que integra formalmente, seja de outros aos quais comparece dependendo do tema ou do convidado. Diante da ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, ele questionou qual o conceito de mulher adotado pela pasta para abordar o uso de banheiros por pessoas transexuais. Publicado no dia 5, o post já teve mais de 350 000 curtidas e 18 100 comentários.
Em ano eleitoral, com a gestão petista enfraquecida pelas recorrentes derrotas no Congresso e a força demonstrada pela oposição ao impor sua pauta, a perspectiva é de que a política do confronto só cresça. “A truculência aumentou com a chegada do calendário eleitoral, mas também porque o governo sofreu derrotas importantes, gerando um empoderamento do bolsonarismo”, acredita Sâmia Bomfim (PSOL-SP). No último dia 4, ela teve de ouvir uma deputada bolsonarista, Coronel Fernanda (PL-MT), citar indiretamente a morte do irmão dela, o médico Diego Ralf Bomfim, uma das vítimas em um ataque a um quiosque no Rio, para justificar o apoio à PEC que endurece a legislação sobre drogas. Integrante da Comissão de Segurança Pública, Coronel Telhada (PP-SP) atribui a escalada à dificuldade do governo de pautar seus projetos. “Na segurança, por exemplo, temos ampla maioria e vamos aprovar tudo o que for de interesse da população, querendo a esquerda ou não”, afirma.
Uma arena quase certa para novos embates fora do tom entre direita e esquerda deverá ser o grupo de trabalho criado por Lira na semana passada para debater a regulação das plataformas digitais e impor regras contra fake news, hoje um dos temas que mais mobilizam o bolsonarismo. Entre os parlamentares que vão integrar o grupo estão dois investigados pelo STF por espalhar notícias falsas — Gustavo Gayer (PL-GO) e Filipe Barros (PL-PR) — e outros que já se declaram contra quaisquer propostas que limitam a “liberdade de expressão”, a exemplo de Marcel Van Hattem (Novo-RS). O mesmo cenário belicista é projetado para a CCJ durante a análise do projeto que propõe anistia aos condenados e investigados pelo 8 de Janeiro. Em tese, o texto não beneficiaria Bolsonaro, mas todos os demais que participaram de manifestações com motivação político-eleitoral ou que as apoiaram (veja a reportagem na pág. 32).
O motor para esse tipo de comportamento, muito distante do esperado para integrantes de um poder da República, talvez seja a falta de punição. Desde fevereiro do ano passado, 34 representações por ofensas, quebras de decoro, assédio e rachadinha foram protocoladas na Comissão de Ética. Nenhuma resultou em sanção severa. A solução proposta por Lira também gera conflitos, por não esclarecer de forma clara qual será a régua adotada para propor a suspensão cautelar de mandatos parlamentares. Outra crítica diz respeito ao fato de a proposta de punição imediata partir da Mesa Diretora, o que daria mais poderes a Lira às vésperas da eleição de seu sucessor. Seja qual for o modelo, o certo é que como está não dá para ficar. O país tem vários temas complexos a discutir e o que se espera de seus eleitos é que tratem essas pautas com seriedade, profundidade e decoro. Isso deveria pesar mais nas urnas do que vídeos, memes e likes.
Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897