Bolsonaro traz desinformação que equivale a ‘mentira política’, diz Fachin
Novo presidente do TSE lamentou desistência de general de assumir posto-chave . Para ele, a guerra cibernética contra Justiça Eleitoral 'já foi declarada’
Na véspera de assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Edson Fachin afirmou a VEJA que as declarações do presidente Jair Bolsonaro, que usou um questionário do Exército para atacar a lisura do sistema eletrônico de votação, promovem “desinformação”, o que equivale à “mentira política”. O ministro também comentou a decisão do general da reserva do Exército Fernando Azevedo de não assumir mais o posto-chave de diretor-geral do TSE nos próximos dias. O cargo é uma espécie de síndico do tribunal, que cuida de questões administrativas e tecnológicas, como as urnas eletrônicas. “O general Fernando possui um longo histórico de serviços prestados à sociedade brasileira. Possui, ademais, uma conhecida história de dedicação e fidelidade à democracia”, disse. A ida de Azevedo para o TSE provocou incômodo entre militares, que temiam o uso político da nomeação, já que a indicação serviria para legitimar o resultado das urnas e arrastaria as Forças Armadas para o centro do debate eleitoral. Abaixo, os principais trechos da entrevista.
De que forma a desistência do general Azevedo de ocupar a direção-geral do TSE afeta os trabalhos do tribunal? O general Azevedo foi convidado pelo ministro Alexandre (de Moraes, que assume a vice-presidência do TSE na próxima semana) e quando no ano pretérito eu soube, em diálogo com o ministro Alexandre, propus antecipar o exercício desde o início da minha gestão, e assim eu poderia contribuir para evitar solução de continuidade. O general Fernando possui um longo histórico de serviços prestados à sociedade brasileira. Possui, ademais, uma conhecida história de dedicação e fidelidade à democracia. As questões pessoais, familiares e saúde dele não permitiram que ele aceitasse o cargo, mas nem por isso deixo de registrar que ele seria muito honroso para nossa gestão que se inicia e que prima, entre outros fatores, pela organização, pelo planejamento estratégico, pela abertura ao diálogo — em especial com atores e entidades genuinamente comprometidos com a preservação da normalidade constitucional e do patrimônio democrático brasileiro — e com a eficiente administração dos recursos humanos, tecnológicos, patrimoniais e financeiros do Tribunal Superior Eleitoral. A presença e permanência do dr. Rui (Moreira de Oliveira, que é civil e vai ficar no cargo de diretor-geral) também atende ao objetivo, de modo que o tribunal estará bem atendido, igualmente.
As milícias digitais são a maior ameaça para as eleições 2022? As milícias digitais ameaçam significativamente não apenas as eleições, mas a própria democracia. Há riscos de ataques ao TSE de diversas origens, inclusive favorecidos por nações. A Rússia é um exemplo dessas procedências – e tem relutado em sancionar os cibercriminosos. Isso é grave. Para além das mentiras, essas milícias disseminam ódio, intolerância e rancor, separando as pessoas e dificultando as possibilidades de consenso. Devem, por esse motivo, ser repelidas de acordo com a lei, à semelhança do que ocorre com qualquer outra espécie de organização criminosa. Criminosos, colaboracionistas e agentes estatais, de feitio nazifascista, misóginos, racistas, e sobretudo autoritários, hospedados em diversos países, do que é exemplo a Rússia, aparelharam a guerra contra a Justiça Eleitoral. Atacar a Justiça Eleitoral é atacar a democracia.
É uma guerra? Tenhamos presente: a guerra cibernética contra a Justiça Eleitoral já foi declarada. Nós vamos defender a Justiça Eleitoral, o processo eleitoral e a própria democracia.
O senhor concorda com a suspensão do Telegram, se a plataforma continuar não cooperando com a Justiça Eleitoral? Sem adiantar qualquer posicionamento no caso concreto, a atuação das instituições, em relação aos serviços de comunicação na internet, se beneficiaria da construção de um marco jurídico mais adstrito aos serviços de mensageria e redes sociais, determinando os moldes de seu funcionamento em território nacional, inclusive quanto à representação jurídica em território nacional.
Qual o papel do TSE na relação com as plataformas? Árbitro não joga, arbitra. Árbitro não faz regras, aplica. E por isso mesmo deve ser implacável com quem viola o regulamento do certame eleitoral. É assim que temos eleições íntegras. O juiz não apenas conta os gols, quando necessário ele também aponta penalidades, e ainda mais: determina expulsões, pois não pode nem deve deixar incólume quem afronta as regras desse jogo, como por exemplo quem comete delitos contra a própria democracia.
O presidente Jair Bolsonaro tem reforçado o discurso hostil contra o TSE e chegou a dizer que o sistema eleitoral “não é de confiança de todos”. Como o senhor vê esses reiterados ataques? Atacar a Justiça Eleitoral, com apoio em informações falsas ou em dúvidas fingidas, significa não apenas negar às cidadãs e aos cidadãos o direito de julgar, mas, sobretudo, flertar com a violência. O fenômeno da desinformação não se associa, exclusivamente, com a distorção de dados ou com a invenção de fatos em geral. É possível desinformar, por exemplo, inundando o cardápio informativo com um número elevado de notícias banais, dificultando, dessa forma, a identificação da verdade, que termina perdida no mercado da atenção. Outra alternativa, muito conhecida, é minar a credibilidade simulando a dúvida: fingir desconfiança para gerar desconfiança. Afirmações como essas participam do quadro clássico da desinformação e equivalem, moralmente, às formas mais explícitas de mentira política.
Qual é sua opinião sobre o questionário do Exército, cujo teor foi revelado por VEJA, que elencava uma série de dúvidas sobre as etapas do processo eleitoral? As Forças Armadas figuram como atores legitimados para a participação em nossos processos de auditoria e, além disso, ganharam assento em nossa Comissão de Transparência das Eleições. A criação de um comitê formado por representantes de diversos entes públicos e representantes da sociedade civil constitui claro indicativo no sentido do que o TSE nada tem a temer ou esconder. O encaminhamento de questionamentos e a apresentação de recomendações retratam, precisamente, o comportamento esperado dos membros da comissão, que leva o espírito de união em busca de soluções.
A democracia corre algum risco? A polarização política e, consequentemente, o extremismo adentram, naturalmente, o espectro de preocupações do TSE. Isso porque os organismos eleitorais são, por vocação, instituições garantidoras da paz social. Na democracia, governos são transitórios e as eleições são respeitadas. O Brasil faz um chamamento a quem preserva as instituições constitucionais permanentes: sigam firmes à altura da sua função. O povo, seus representantes legítimos, a imprensa livre, as lideranças da sociedade civil, as instituições permanentes do Estado de Direito, a comunidade internacional, não capitularão diante das ameaças. A democracia é inegociável.