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Infidelidade partidária volta à cena na votação da PEC dos Precatórios

Parlamentares de legendas de oposição a Bolsonaro votam de acordo com vontade do Palácio do Planalto - uma das cenas da algazarra no sistema político

Por Leonardo Lellis Atualizado em 4 jun 2024, 13h20 - Publicado em 14 nov 2021, 08h00

A algazarra que marca o sistema político brasileiro é uma velha conhecida do eleitor. Desde 1979, quando chegou ao fim o bipartidarismo imposto pela ditadura, a quantidade de agremiações só cresceu, chegando ao impressionante número atual de 33 legendas autorizadas a disputar eleições e a dividir o fundo partidário abastecido integralmente com dinheiro público. Volta e meia acontece um episódio para lembrar ao país a fragilidade dessas organizações e outra distorção do sistema: a peculiar figura da oposição governista. O último episódio do tipo envolveu a votação na Câmara dos Deputados da PEC dos Precatórios, uma proposta de emenda à Constituição que permitirá ao governo federal adiar a quitação de dívidas reconhecidas pela Justiça e acomodar o pagamento de 400 reais mensais do Auxílio Brasil (substituto do Bolsa Família) em ano eleitoral. A votação em primeiro turno, feita a toque de caixa e na madrugada, escancarou as fissuras em siglas como PDT, PSDB e PSB, que pleiteiam disputar a eleição de 2022 contra Jair Bolsonaro, mas que viram boa parte de seus parlamentares se alinhar com a proposta estratégica para o presidente.

O exemplo mais clamoroso de infidelidade política foi o do PDT, que viu quinze de seus 25 parlamentares endossarem o projeto, que avançou por meros 4 votos a mais que o mínimo de 308 exigido. Ou seja, sem o apoio pedetista e de boa parte do PSB — dez dos 31 socialistas —, a PEC não teria ido para a segunda votação. Mesmo com o recuo de parte desses parlamentares, pressionados por suas direções, o projeto passou com mais folga ainda no segundo turno (323 votos) graças ao quórum maior e aos apoios angariados em outras legendas. O comportamento do PDT chegou a fazer com que Ciro Gomes, terceiro colocado na maioria das pesquisas presidenciais, suspendesse, em protesto, a sua candidatura — dos 15 votos a favor do governo, no entanto, só dez foram revertidos após o gesto.

arte Oposição

Esse hábito de infidelidade não vem de hoje, mas pode estar chegando ao estado de arte na era Bolsonaro, que fez carreira passando por oito legendas e está prestes a embarcar na nona, o PL (leia a reportagem na pág. 36). O capitão, que chegou ao Palácio do Planalto pulando de galho em galho da frondosa árvore partidária brasileira, veio com apetite para embaralhar ainda mais o cenário — e conseguiu. Logo na largada já disse a que veio: a pretexto de brecar o toma lá dá cá do varejo político, prometeu negociar em alto nível as propostas de sua gestão com bancadas temáticas, passando por cima das agremiações. A estratégia revelou-se um fiasco que quase sepultou seu governo e, em meio à emergência, o jeito foi se agarrar à velha “boia” do Centrão.

Essa base de sustentação inovou no sistema de cooptação de apoios à base de dinheiro. A mola propul$ora da vez é o malfadado “orçamento secreto”, uma malandragem parlamentar gestada com ajuda do governo no ano passado que permite direcionar bilhões de reais do Orçamento por meio de emendas negociadas com o relator sob supervisão do Planalto. Tudo isso sem nenhuma transparência quanto a critérios de prioridade. Em ritmo acelerado, deputados de oposição também passaram a vender apoios em troca dessas verbas, com o argumento de que enfrentarão rivais governistas que vão se valer desses recursos em 2022. Um dia depois da votação em segundo turno da “PEC do calote”, o Supremo barrou, por 8 votos a 2, o repasse de recursos por meio do orçamento secreto, mas o mérito do caso ainda será julgado. “O sistema atual de barganha diminuiu ainda mais o peso dos partidos”, acredita Eduardo Grin, cientista político da FGV. “Nenhum deputado quer ficar com menos recursos que o seu concorrente.”

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Há outros fatores envolvidos no fenômeno do crescimento da oposição governista, como o instinto particular de sobrevivência política. Mesmo que um deputado não seja agraciado com uma emenda, ele pode se sentir compelido a votar a favor de um determinado projeto em razão do impacto que o seu voto terá entre os seus eleitores. No caso específico da PEC, a rejeição da proposta poderia inviabilizar o pagamento do Auxílio Brasil e ele ser cobrado por isso mais adiante. “O parlamentar faz a seguinte pergunta: ‘Qual é o risco que eu tenho, do ponto de vista da minha sobrevivência politica, em agir contra o meu partido?”, exemplifica a cientista política Andréa Freitas, professora da Unicamp e pesquisadora do Cebrap. Segundo ela, em legendas menos rigorosas ideologicamente, contrariar a orientação pode ter um desgaste menor do que irritar o eleitor.

A FAVOR - Aécio Neves: votação com o governo em 91% dos encaminhamentos -
A FAVOR - Aécio Neves: votação com o governo em 91% dos encaminhamentos – (Cristiano Mariz/VEJA)

Em alguns casos, o que dá o tom, porém, é a identificação do deputado com a proposta em discussão — um tipo de descompasso que é possível ver em partidos como PSDB, Cidadania e Novo, legendas que defendem o impeachment de Bolsonaro, mas cujos deputados se alinham à orientação da liderança do governo em no mínimo 80% das vezes, conforme levantamento da plataforma Radar do Congresso (veja o quadro). Um caso emblemático é o do Novo. Enquanto a direção do partido, incluindo o seu principal líder, João Amoêdo, pede a saída de Bolsonaro, seus deputados votam quase sempre com o governo por comungarem da visão da equipe econômica do ministro Paulo Guedes, principalmente em temas como diminuir o tamanho do Estado e promover desregulamentações que estimulem a iniciativa privada na economia — a PEC dos Precatórios foi um raro caso em que a bancada da legenda votou contra o governo, justamente por não concordar com o calote previsto.

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Outro exemplo de comportamento dúbio da bancada vem do PSDB. Aécio Neves, que foi candidato do partido ao Planalto em 2014, tem um índice atual de governismo de 91%. Para desafetos do mineiro, como o grupo ligado ao governador paulista João Doria, Aécio faz acordos com o governo em troca de emendas e em razão da sua estratégia de trabalhar contra a candidatura presidencial do partido. Já Aécio, que apoia o governador gaúcho Eduardo Leite nas prévias do partido (veja reportagem na pág. 32), rebate dizendo que Doria não conhece o “instinto de sobrevivência” e que a empreitada presidencial do paulista atende apenas a um projeto personalista. Há ainda os casos em que os tucanos estão desalinhados com o posicionamento oposicionista do partido por pura identificação programática com a pauta do governo, como ocorre com o Novo.

Além dos interesses mais imediatos dos parlamentares ou de suas visões divergentes sobre temas em discussão, a infidelidade é parte de um processo histórico. O PSB e o PDT, por exemplo, ainda padecem do fato de serem partidos com mais força regional nos berços políticos de suas figuras emblemáticas: no caso, o PDT no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, onde Leonel Brizola foi governador, e o PSB em Pernambuco, onde Miguel Arraes comandou o governo. Sem nomes com a mesma força política em outros estados, acabaram por acolher figuras com mais potencial eleitoral do que exatamente um alinhamento ao ideário de esquerda. Pouca gente se lembra, mas a ministra Tereza Cristina (Agricultura) e o ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), que integram o governo Bolsonaro, foram filiados recentemente ao PSB.

REBELDES - Parlamentares do PT em 2003: expulsos por rejeitarem a reforma da Previdência de Lula -
REBELDES - Parlamentares do PT em 2003: expulsos por rejeitarem a reforma da Previdência de Lula – (Daniel Guimarães/Folhapress/.)
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Essa falta de coerência ideológica está relacionada ao uso dos partidos como meros instrumentos de obtenção do poder — e dinheiro, claro. “A Constituição de 88 deixou muito flexíveis as exigências para a formação de legendas, o que significa que facilitou que qualquer pequeno agrupamento, mesmo que não tivesse muita concepção programática, pudesse se organizar”, afirma o cientista político José Álvaro Moisés, professor da USP. Mesmo siglas mais consolidadas em seu campo ideológico passaram pelo problema. Foi o caso do PT. Além das tendências radicais que deram origem ao PSTU e ao PCO nos anos 90, já no primeiro ano do governo Lula, em 2003, o partido expulsou a senadora Heloísa Helena e os deputados Luciana Genro, João Fontes e Babá — gesto que deu origem ao PSOL — por ficarem contra a orientação da sigla na votação da reforma da Previdência petista.

O problema, portanto, é antigo, só aumenta e não há sinal de que irá mudar a curto prazo, ainda que ilustrem um grave problema no processo de representação democrática. Tanto é que, como se fossem poucos os 33 partidos existentes, há mais 83 que buscam aprovação no TSE. A última má notícia veio do Congresso ao aprovar neste ano a autorização para que partidos se organizem em federações. Foi um drible à bem-vinda cláusula de barreira, criada para impedir siglas com baixo desempenho eleitoral de terem acesso ao fundo partidário. A partir do ano que vem, os nanicos podem se unir em “federação”, ganhando estatura suficiente para disputar um belo quinhão desse dinheiro. Ou seja: fizeram como disse o pensador italiano Giuseppe di Lampedusa, autor de O Leopardo: “Algo deve mudar para que tudo continue como está”.

Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764

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