Infidelidade partidária volta à cena na votação da PEC dos Precatórios
Parlamentares de legendas de oposição a Bolsonaro votam de acordo com vontade do Palácio do Planalto - uma das cenas da algazarra no sistema político
A algazarra que marca o sistema político brasileiro é uma velha conhecida do eleitor. Desde 1979, quando chegou ao fim o bipartidarismo imposto pela ditadura, a quantidade de agremiações só cresceu, chegando ao impressionante número atual de 33 legendas autorizadas a disputar eleições e a dividir o fundo partidário abastecido integralmente com dinheiro público. Volta e meia acontece um episódio para lembrar ao país a fragilidade dessas organizações e outra distorção do sistema: a peculiar figura da oposição governista. O último episódio do tipo envolveu a votação na Câmara dos Deputados da PEC dos Precatórios, uma proposta de emenda à Constituição que permitirá ao governo federal adiar a quitação de dívidas reconhecidas pela Justiça e acomodar o pagamento de 400 reais mensais do Auxílio Brasil (substituto do Bolsa Família) em ano eleitoral. A votação em primeiro turno, feita a toque de caixa e na madrugada, escancarou as fissuras em siglas como PDT, PSDB e PSB, que pleiteiam disputar a eleição de 2022 contra Jair Bolsonaro, mas que viram boa parte de seus parlamentares se alinhar com a proposta estratégica para o presidente.
O exemplo mais clamoroso de infidelidade política foi o do PDT, que viu quinze de seus 25 parlamentares endossarem o projeto, que avançou por meros 4 votos a mais que o mínimo de 308 exigido. Ou seja, sem o apoio pedetista e de boa parte do PSB — dez dos 31 socialistas —, a PEC não teria ido para a segunda votação. Mesmo com o recuo de parte desses parlamentares, pressionados por suas direções, o projeto passou com mais folga ainda no segundo turno (323 votos) graças ao quórum maior e aos apoios angariados em outras legendas. O comportamento do PDT chegou a fazer com que Ciro Gomes, terceiro colocado na maioria das pesquisas presidenciais, suspendesse, em protesto, a sua candidatura — dos 15 votos a favor do governo, no entanto, só dez foram revertidos após o gesto.
Esse hábito de infidelidade não vem de hoje, mas pode estar chegando ao estado de arte na era Bolsonaro, que fez carreira passando por oito legendas e está prestes a embarcar na nona, o PL (leia a reportagem na pág. 36). O capitão, que chegou ao Palácio do Planalto pulando de galho em galho da frondosa árvore partidária brasileira, veio com apetite para embaralhar ainda mais o cenário — e conseguiu. Logo na largada já disse a que veio: a pretexto de brecar o toma lá dá cá do varejo político, prometeu negociar em alto nível as propostas de sua gestão com bancadas temáticas, passando por cima das agremiações. A estratégia revelou-se um fiasco que quase sepultou seu governo e, em meio à emergência, o jeito foi se agarrar à velha “boia” do Centrão.
Essa base de sustentação inovou no sistema de cooptação de apoios à base de dinheiro. A mola propul$ora da vez é o malfadado “orçamento secreto”, uma malandragem parlamentar gestada com ajuda do governo no ano passado que permite direcionar bilhões de reais do Orçamento por meio de emendas negociadas com o relator sob supervisão do Planalto. Tudo isso sem nenhuma transparência quanto a critérios de prioridade. Em ritmo acelerado, deputados de oposição também passaram a vender apoios em troca dessas verbas, com o argumento de que enfrentarão rivais governistas que vão se valer desses recursos em 2022. Um dia depois da votação em segundo turno da “PEC do calote”, o Supremo barrou, por 8 votos a 2, o repasse de recursos por meio do orçamento secreto, mas o mérito do caso ainda será julgado. “O sistema atual de barganha diminuiu ainda mais o peso dos partidos”, acredita Eduardo Grin, cientista político da FGV. “Nenhum deputado quer ficar com menos recursos que o seu concorrente.”
Há outros fatores envolvidos no fenômeno do crescimento da oposição governista, como o instinto particular de sobrevivência política. Mesmo que um deputado não seja agraciado com uma emenda, ele pode se sentir compelido a votar a favor de um determinado projeto em razão do impacto que o seu voto terá entre os seus eleitores. No caso específico da PEC, a rejeição da proposta poderia inviabilizar o pagamento do Auxílio Brasil e ele ser cobrado por isso mais adiante. “O parlamentar faz a seguinte pergunta: ‘Qual é o risco que eu tenho, do ponto de vista da minha sobrevivência politica, em agir contra o meu partido?”, exemplifica a cientista política Andréa Freitas, professora da Unicamp e pesquisadora do Cebrap. Segundo ela, em legendas menos rigorosas ideologicamente, contrariar a orientação pode ter um desgaste menor do que irritar o eleitor.
Em alguns casos, o que dá o tom, porém, é a identificação do deputado com a proposta em discussão — um tipo de descompasso que é possível ver em partidos como PSDB, Cidadania e Novo, legendas que defendem o impeachment de Bolsonaro, mas cujos deputados se alinham à orientação da liderança do governo em no mínimo 80% das vezes, conforme levantamento da plataforma Radar do Congresso (veja o quadro). Um caso emblemático é o do Novo. Enquanto a direção do partido, incluindo o seu principal líder, João Amoêdo, pede a saída de Bolsonaro, seus deputados votam quase sempre com o governo por comungarem da visão da equipe econômica do ministro Paulo Guedes, principalmente em temas como diminuir o tamanho do Estado e promover desregulamentações que estimulem a iniciativa privada na economia — a PEC dos Precatórios foi um raro caso em que a bancada da legenda votou contra o governo, justamente por não concordar com o calote previsto.
Outro exemplo de comportamento dúbio da bancada vem do PSDB. Aécio Neves, que foi candidato do partido ao Planalto em 2014, tem um índice atual de governismo de 91%. Para desafetos do mineiro, como o grupo ligado ao governador paulista João Doria, Aécio faz acordos com o governo em troca de emendas e em razão da sua estratégia de trabalhar contra a candidatura presidencial do partido. Já Aécio, que apoia o governador gaúcho Eduardo Leite nas prévias do partido (veja reportagem na pág. 32), rebate dizendo que Doria não conhece o “instinto de sobrevivência” e que a empreitada presidencial do paulista atende apenas a um projeto personalista. Há ainda os casos em que os tucanos estão desalinhados com o posicionamento oposicionista do partido por pura identificação programática com a pauta do governo, como ocorre com o Novo.
Além dos interesses mais imediatos dos parlamentares ou de suas visões divergentes sobre temas em discussão, a infidelidade é parte de um processo histórico. O PSB e o PDT, por exemplo, ainda padecem do fato de serem partidos com mais força regional nos berços políticos de suas figuras emblemáticas: no caso, o PDT no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, onde Leonel Brizola foi governador, e o PSB em Pernambuco, onde Miguel Arraes comandou o governo. Sem nomes com a mesma força política em outros estados, acabaram por acolher figuras com mais potencial eleitoral do que exatamente um alinhamento ao ideário de esquerda. Pouca gente se lembra, mas a ministra Tereza Cristina (Agricultura) e o ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), que integram o governo Bolsonaro, foram filiados recentemente ao PSB.
Essa falta de coerência ideológica está relacionada ao uso dos partidos como meros instrumentos de obtenção do poder — e dinheiro, claro. “A Constituição de 88 deixou muito flexíveis as exigências para a formação de legendas, o que significa que facilitou que qualquer pequeno agrupamento, mesmo que não tivesse muita concepção programática, pudesse se organizar”, afirma o cientista político José Álvaro Moisés, professor da USP. Mesmo siglas mais consolidadas em seu campo ideológico passaram pelo problema. Foi o caso do PT. Além das tendências radicais que deram origem ao PSTU e ao PCO nos anos 90, já no primeiro ano do governo Lula, em 2003, o partido expulsou a senadora Heloísa Helena e os deputados Luciana Genro, João Fontes e Babá — gesto que deu origem ao PSOL — por ficarem contra a orientação da sigla na votação da reforma da Previdência petista.
O problema, portanto, é antigo, só aumenta e não há sinal de que irá mudar a curto prazo, ainda que ilustrem um grave problema no processo de representação democrática. Tanto é que, como se fossem poucos os 33 partidos existentes, há mais 83 que buscam aprovação no TSE. A última má notícia veio do Congresso ao aprovar neste ano a autorização para que partidos se organizem em federações. Foi um drible à bem-vinda cláusula de barreira, criada para impedir siglas com baixo desempenho eleitoral de terem acesso ao fundo partidário. A partir do ano que vem, os nanicos podem se unir em “federação”, ganhando estatura suficiente para disputar um belo quinhão desse dinheiro. Ou seja: fizeram como disse o pensador italiano Giuseppe di Lampedusa, autor de O Leopardo: “Algo deve mudar para que tudo continue como está”.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764