Após ‘recuo tático’, oposição se movimenta para seguir com cerco no Congresso
Parlamentares batem o pé para discutir anistia aos envolvidos no 8 de Janeiro, tentar blindar parlamentares e batalhar para reduzir as prerrogativas do STF

Uma semana após ter sua cadeira ocupada à força por deputados bolsonaristas que protagonizaram um motim no plenário, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), tentou aplacar a crise interna dando ares de normalidade aos trabalhos da Casa. Como ocorre de forma rotineira, ele comandou uma reunião com representantes de partidos na qual pregou uma pacificação entre os congressistas e ressaltou que a turbulência que o país atravessa, em razão de sanções impostas pelos Estados Unidos, exige responsabilidade das autoridades. Num sinal de que estaria disposto a baixar a fervura, Motta evitou impor punições de ofício aos responsáveis pelo levante e, esforçando-se para virar a página, anunciou uma agenda de prioridades para o segundo semestre. Nela, incluiu pautas que “não podem esperar”, como maior rigidez na proteção às crianças no ambiente digital e medidas relacionadas à segurança pública, à educação e ao bolso dos mais vulneráveis. O recado de Motta era claro: a sua gestão se empenharia em pautas de interesse do país e não se curvaria à pressão dos amotinados.
Proferido da cadeira de presidente, a mesma que lhe fora surrupiada durante o levante, o discurso enfrentará um teste de fogo para sair do papel. O cerco dos oposicionistas continua, e eles — apesar de terem feito um recuo tático, sujeitando-se novamente às regras e normas da disputa política — fecharam questão para priorizar a aprovação de textos caros ao grupo. Os projetos foram chamados de “pacote da paz” pelo senador Flávio Bolsonaro, o primogênito de Jair Bolsonaro, mas também receberam a pecha de “pacote da impunidade”. Não sem razão. Os parlamentares bolsonaristas querem mudar as regras do foro privilegiado, para se livrarem das garras do Supremo Tribunal Federal (STF), e depois conseguir o que realmente interessa: a ajuda do Centrão para aprovar a anistia a Bolsonaro, a aliados do capitão e aos investigados e condenados pelos atos de 8 de Janeiro. A tentativa de viabilizar esse acordão já está em curso. O próprio motim que desmoralizou Hugo Motta só foi encerrado depois que deputados bolsonaristas e expoentes do Centrão combinaram trabalhar por esses dois projetos, numa negociação capitaneada pelo deputado Arthur Lira (PP-AL), ex-presidente da Câmara e padrinho da candidatura de Motta ao comando da Casa.

Ecoada com mais veemência por aliados de Jair Bolsonaro, a insatisfação com o modus operandi das apurações tocadas pela Polícia Federal e pelo STF une parlamentares dos mais diversos matizes. Eles dizem que investigadores e acusadores são movidos por interesses políticos e escolhem seus alvos a dedo. O próprio Lira já reclamou disso. PF e STF também poupariam governistas, segundo oposicionistas queixosos. Há preocupação com supostas seletividade e arbitrariedade, mas principalmente com os próprios mandatos. Atualmente, há pelo menos oitenta inquéritos abertos contra deputados e senadores, muitos deles sobre desvio de verbas de emendas parlamentares. Já houve decisões de busca e apreensão contra congressistas e assessores, inclusive nas dependências do Congresso. Na terça-feira 12, VEJA acompanhou o debate sobre o assunto dentro do gabinete de uma das principais lideranças do Centrão. Espalhados em um sofá, deputados calculavam os efeitos do fim do foro privilegiado, que faria os inquéritos descerem para instâncias inferiores, e ressaltavam o receio de que “inimigos” regionais ou “juizinhos” de primeira instância também tivessem sede de investigações contra eles.
O fato é que hoje impera a vontade de se livrar do Supremo. A dúvida é sobre qual regra adotar. Uma das possibilidades é que os inquéritos tenham início nos tribunais regionais federais, com possibilidade de recursos até a última instância. Outra ideia visa retomar o formato previsto na Constituição de 1988, que mantinha o foro no STF, mas condicionava a abertura de investigações a uma autorização prévia da Câmara e do Senado, o que praticamente impedia todas as apurações. Um dos casos mais emblemáticos desse corporativismo explícito aconteceu em 1999, quando Hildebrando Pascoal, apelidado de “deputado da motosserra” após ser apontado como o mandante de um homicídio, foi poupado de investigação na Corte e posteriormente cassado, o que levou seu caso à primeira instância. Depois disso, o Congresso aprovou novas regras para o foro privilegiado, retirando a necessidade do aval prévio para a instauração de inquéritos. Criticados pelo casuísmo, congressistas deram uma demão de verniz na nova proposta, chamando-a convenientemente de “PEC das Prerrogativas”.

Sob a ótica deles, há apenas uma tentativa de defender a imunidade parlamentar, como se esta fosse quase uma garantia de impunidade. “Se a Câmara estiver preocupada com a crítica, ninguém sai de casa. Agora, estão criticando a Constituição originária, e está comprovado que ela se organizou justamente para não deixar o Legislativo de joelhos para o Judiciário. Na hora que tirou essa proteção, ficamos de joelhos”, afirma um dos principais defensores da mudança. Apesar de terem liberado fisicamente o plenário, congressistas do PL anunciaram a obstrução dos trabalhos na Câmara após Hugo Motta não pautar suas demandas. A medida impede a contagem dos 88 deputados do partido no quórum ou no placar das votações e, segundo Sóstenes Cavalcante, líder do PL, vai prosperar até que os parlamentares sejam “tirados da coleira” do STF. Para os bolsonaristas, repita-se, o fim do foro é a antessala da votação da anistia. Daí tamanho empenho. Em meio à ofensiva, numa agenda mantida sob sigilo, cardeais do PL se reuniram na última semana com ministros do Supremo, a quem caberá julgar a constitucionalidade de eventual perdão aprovado pelo Congresso.
Os oposicionistas insistem numa anistia a todos os condenados, mas o salvo-conduto generalizado encontra resistência. “O que eu sinto, do contato que tenho com os parlamentares e no ambiente em que eu converso, é que há uma certa dificuldade com anistia ampla, geral e irrestrita. Nós tivemos o planejamento de morte de pessoas, isso é muito grave. Não sei se há ambiente para anistiar quem agiu dessa forma. Penso que não”, afirmou Hugo Motta ao programa Ponto de Vista, do site de VEJA. Interlocutores do deputado dizem que, apesar disso, poderia haver um acordo para que ao menos a urgência do tema seja levada a votação. Se a tramitação mais célere for aprovada, um texto alternativo, trazendo, por exemplo, algum tipo de dosimetria às punições, poderia ser apresentado. A solução, porém, não resolve o problema da maior parte interessada no assunto: Jair Bolsonaro. O ex-presidente está preso em regime domiciliar e no próximo mês o STF entrará na reta final do processo por tentativa de golpe, ação que pode lhe render mais de quarenta anos de prisão.

Dando a condenação como certa, o entorno do capitão trabalha para que ele também seja beneficiado pelo perdão e sonha ainda com alguma solução que possa reverter a inelegibilidade imposta pela Justiça Eleitoral. Por enquanto, esse plano se mostra de difícil realização. Influentes figuras do Centrão têm em mãos pesquisas que indicam que a rejeição ao ex-presidente segue alta e que ele seria derrotado por Lula numa eventual reedição da disputa de 2022. Por isso, aumenta a pressão para que Bolsonaro declare logo que não participará do páreo e passe até o fim deste ano o bastão ao seu representante no campo da direita — de preferência, para o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O capitão, no entanto, resiste. Bolsonaro tem esperança de que o apoio político do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ajude-o a escapar da cadeia e a recuperar os direitos políticos. Prejudicial à economia nacional, o tarifaço teria dado o impulso inicial à cruzada pela sua redenção. Já a Lei Magnitsky, aplicada a Alexandre de Moraes, pressionaria outras autoridades do Judiciário e do Legislativo a anistiá-lo. Os movimentos estão acontecendo. O cerco no Congresso é parte da estratégia e, segundo um aliado, fez Bolsonaro ver uma luz no fim do túnel. A redenção depende mais do que nunca da pressão externa e do esforço de aliados em legislar em causa própria.
Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2025, edição nº 2957