‘A senhora não pode entrar aqui!’: deputada negra relata, emocionada, situações de preconceito na Câmara
Enfermeira Rejane (PCdoB-RJ) conta que chegou a ser barrada no plenário por servidor aos gritos; "É a minha cor? Não tenho cara de deputada?", questiona

Em seu primeiro mandato como deputada federal, Enfermeira Rejane (PCdoB) chamou a atenção na última semana ao denunciar no plenário ser barrada com frequência por funcionários em espaços da Casa. A VEJA, ela relata, emocionada, episódios difíceis vividos na Câmara, ambiente majoritariamente masculino e conservador. No desabafo que fez ao microfone, ela relacionou as abordagens à sua cor. Mesmo usando sempre o broche de parlamentar, já tentaram impedi-la de participar de audiência e votação. Sindicalista e conhecida como durona, Rejane revela que chorou após o caso que considera mais grave, quando um servidor, aos gritos, dizia que ela não podia entrar no plenário. “Passei um tempo lambendo minhas feridas, mas isso não vai me parar”, afirma ela, que defende a pauta da negritude desde os tempos de Alerj, onde foi deputada estadual por 12 anos.
A senhora denunciou ser barrada, com frequência, em espaços da Câmara. Qual foi a situação mais absurda?
Um dos piores episódios foi quando estava acontecendo uma audiência pública com um ministro. Fui entrar na sala, de broche, e tinha uma segurança que disse que eu não podia entrar. Eu disse “sou deputada”. Ela alegou que a sala estava cheia e não podia mais entrar ninguém. Eu disse “vou entrar”, mas não me deixaram levar ninguém, enquanto todos os deputados participam com mais uma pessoa. Ela disse que só podia entrar com “fitinha”, mas vi que não tinha ninguém com “fitinha” nenhuma. Perguntei sobre essa história, e negaram a existência da regra. Expliquei que tinha sido barrada.
Como reagiu nesses episódios?
A vez que estourei de fato foi após um problema no elevador, ao não ser levada até o andar que precisava ir. Eu me distraí, estava a caminho da votação. Saí do elevador, e fecharam a porta, me deixando no andar errado. Quando finalmente consegui chegar ao plenário, passei por um separador de espaços, e um funcionário veio gritando na minha direção: “A senhora não pode entrar aqui não! A senhora não pode entrar aqui não!”. Isso aos berros. Mas eu já estava lá dentro. Aquilo me irritou, e pensei “O que está acontecendo? É a minha cor? Eu não tenho cara de deputada?”. Sentei, emocionalmente abalada, e pedi um minuto para falar. Desabafei. Mais tarde, chorei em casa, não vou negar.
E como é a reação dos colegas na Câmara?
Já ouvi muitos deputados dizerem: “isso aqui acontece sempre”. Muitos naturalizam, minimizam o que ocorre ali. Dizem que funcionários não conseguem gravar o rosto de todos os deputados, mas nós deputadas mulheres somos tão poucas… Se eu fosse loira, chegasse aqui com meu sapato alto, bolsa de grife, roupa bacana, não iriam fazer isso. Eu soube que, no mesmo dia (em que tentaram barrá-la no plenário), chamaram todos os mais de 300 funcionários para uma reunião. Mandaram todos estudar os rostos dos deputados.
Situações de racismo também aconteciam na Alerj?
Esse preconceito não é de agora. A diferença é que agora vem de funcionários. Antes, vinha de deputados de direita, que na Alerj estavam sempre em embate com mulheres. E eu fui a única deputada que se autodeclarou negra em 2011. Pensei “ué, tanto deputado negro aqui”. No meu primeiro mandato, era sozinha nessa causa. Depois vieram Dani Monteiro, Renata Souza e Mônica Francisco. Num dia em que havia sofrido preconceito, elas me abraçaram e uma disse: “Negona, vem cá. Chegou reforço e nunca mais você vai derramar uma lágrima com esses caras”. Eu vou denunciar sempre, por mais que doa.
O que está por trás das atitudes de barrá-la dentro da Câmara, mesmo usando broche de parlamentar?
O parlamento é muito masculino. E nós, mulheres, somos sempre minoria. E imagine mulher negra. O estereótipo que fazem de deputado é de homem e branco. Então, eu passo longe. E, na Câmara, é um monte de homem para tudo que é lado. Quando cheguei, me senti muito mal.
Como foi a repercussão de sua denúncia de racismo no plenário?
No dia seguinte, depois de já ter lambido minhas feridas sozinha, eu fui para o plenário, e o líder do meu partido veio conversar comigo. Falou que a responsável pelos funcionários dentro do plenário tinha feito a reunião com todos eles, para que isso não voltasse a acontecer. Me disseram que o funcionário que me abordou dentro do plenário já foi retirado. Também ouvi que há um rodízio muito grande. Pensei, então, que se tratava de um trabalhador terceirizado. Mas, não! São funcionários públicos, que estão há trezentos anos ali.
Como a senhora diz, o caso é grave, mas não chegou a paralisá-la.
Me dá mais força. Meu trabalho seguirá sendo pautado pelo combate ao racismo e pelas questões da negritude, assim como continuo lutando pela valorização das mulheres, da enfermagem e do futebol feminino. Esses episódios só me dão mais vontade de trabalhar. Eu só não sabia que era tanto racismo, tive que sentir na pele de novo. E, se isso se repetir, vou entrar com processo, tocar para frente. As mulheres negras precisam ocupar esses espaços de poder. Precisamos de uma Casa diversa.
O que será feito, de fato, após a denúncia no plenário?
Eu já tinha protocolado uma audiência pública, que já passou na Comissão de Saúde, sobre racismo na enfermagem, que é muito grande. Vai ser no dia 10 de julho. Esse assunto chegou ao meu limite. Tem que falar, porque do lado de fora tem muita gente para se solidarizar. Teve abaixo-assinado, carta pública… Muitos movimentos negros fizeram pronunciamentos, assim como os Conselhos de Enfermagem, sobre o meu caso. Racismo é crime inafiançável. A mensagem que quero passar é a de que as mulheres negras não podem se calar, não podem deixar que isso corroa a gente por dentro.