A nova TV do Lula: os planos do Planalto para ampliar o alcance da EBC
Emissora, que marca menos de 1 ponto de audiência, ganhou uma espécie de extensão para fazer propaganda do governo e agora estuda lançar canal internacional
Criada por Lula em 2007 com o propósito de ser a “BBC brasileira”, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) construiu uma história marcada pela pouca relevância, gasto expressivo de dinheiro público e uso político. Quando chegou ao poder, em 2019, Jair Bolsonaro prometeu que iria privatizar a “TV do Lula”. Não só desistiu da ideia, como a transformou na “TV do Bolsonaro”. Só em 2021, a emissora interrompeu 177 vezes a programação para transmitir ao vivo a sua ida a cerimônias militares e cultos evangélicos e até a famosa reunião com embaixadores para espalhar notícias falsas sobre as urnas eletrônicas, o que culminou na sua inelegibilidade por decisão do Tribunal Superior Eleitoral em junho. Lula voltou ao poder e, logo no primeiro dia de governo, tirou a EBC da lista de privatizações. O negócio não apenas sobreviveu, como é visto hoje como estratégico para a imagem do Palácio do Planalto. Por isso, continua no ar, sempre com o mesmo tom oficialesco, e ganhou uma espécie de extensão dedicada apenas a fazer propaganda explícita do governo. Como se não bastasse, há um projeto em curso de criar um canal internacional para vender uma imagem positiva do país.
Dentro desse plano da multiplicação do alcance da “TV do Lula”, o passo mais significativo foi dado com o Canal Gov, que entrou no ar em 25 de julho e consolidou o plano de separar a comunicação pública da comunicação de governo. O projeto é inspirado na antiga TV NBR, criada em 1998 para divulgar ações do Executivo e extinta por Bolsonaro. O canal funciona na TV aberta, a cabo e no YouTube, tem 176 funcionários e um contrato de 40 milhões de reais anuais com a Secretaria de Comunicação Social (Secom), comandada pelo ministro Paulo Pimenta, principal ideólogo da mudança. A proposta é compartilhar informações sobre as políticas públicas com uma linguagem simples, mas o tom de propaganda é perceptível — entre os objetivos estão dar “visibilidade à reconstrução e ao legado” e mostrar “o Brasil que está no rumo certo”. A grade inclui uma live semanal com Lula, apresentada por Marcos Uchôa, ex-Globo, que ainda estrela o programa Brasil no Mundo, com foco na política externa. Às quartas é a vez do Bom Dia, Ministro. Há ainda a transmissão de todos os eventos oficiais, anúncios e coletivas para a imprensa.
Com o novo canal, a TV Brasil, principal produto da EBC, ficaria dedicada apenas a uma grade educativa (aliás, isso fazia parte da promessa original do primeiro mandato de Lula, mas nunca se cumpriu). Em paralelo, haverá uma pesada faxina no legado bolsonarista, como o fim da compra de novelas bíblicas da TV Record — só Os Dez Mandamentos custou 3,5 milhões de reais. “Eram muito caras e atendiam a um público predominantemente bolsonarista”, justifica o presidente da EBC, Hélio Doyle. Apesar da reformulação, a grade é preenchida com futebol da Série D do Brasileiro, desenhos manjados e filmes velhos.
Com esse naipe de “atrações”, não é de se espantar que a audiência não chegue a 1 ponto (equivalente a 250 000 domicílios). O próprio presidente da empresa admite que o público é pequeno, mas atribui parte desse resultado à ascensão das plataformas de streaming, às redes sociais e à concorrência com a TV a cabo. “Mas a TV aberta ainda é a preferida de boa parte da população. O nosso público são as classes C, D e E”, afirma Doyle. O gasto para manter a programação é alto. A EBC, um conglomerado que tem ainda emissoras de rádio e uma agência de notícias, emprega 1 846 pessoas e tem orçamento de 741,5 milhões de reais. A despeito do investimento, a TV Brasil nunca produziu nada digno de reconhecimento, ao contrário da TV Cultura, do governo de São Paulo. Em sua melhor fase, que ficou para trás, infelizmente, ela venceu quatro vezes o Emmy por seus programas infantis e infantojuvenis.
Apesar de se dizer uma emissora independente, a TV Brasil tem um longo histórico de oficialismos problemáticos. Com Bolsonaro, havia pautas proibidas, como o assassinato de Marielle Franco e a ditadura militar. No atual governo, já teve assessor de ministro, segundo o próprio Doyle, reclamando de conteúdo jornalístico. “A programação é sempre afável ao poder Executivo, renuncia completamente à obrigação de dar uma informação minimamente crítica”, afirma Eugênio Bucci, que presidia a Radiobrás, antecessora da EBC, na época da criação da emissora. Países como Reino Unido, Canadá, Suíça, Alemanha e França também têm canais públicos, embora mais bem-sucedidos e com o mínimo de liberdade para produzir.
Em breve, a comunicação oficial simpática a Lula ganhará novos capítulos. No último dia 2, a EBC criou um grupo para discutir a viabilidade de criação de um canal internacional, como pediu Lula. “É para mostrar simplesmente o Brasil como ele é, despido, para as pessoas saberem o que significam os Lençóis Maranhenses, o Delta do Parnaíba”, disse o presidente. Em outra frente, está a caminho a TV aberta do PT, que seria a primeira de um partido no Brasil — o pedido está sob análise no Ministério das Comunicações. Assim, embora nunca tenha se concretizado a pretensão de criar uma “BBC brasileira”, o apetite por lançar canais oficiais só aumenta. A maioria do público provavelmente vai continuar ignorando o que está no ar, mas vai pagar a conta.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854