A guerra dos dossiês: como circulam as intrigas do governo Bolsonaro
Acusações de crimes, mentiras e histórias de sexo constrangem, provocam demissões e revelam o nível rasteiro da disputa de poder no entorno do presidente
O presidente Jair Bolsonaro enxerga conspirações e conspiradores em todos os cantos. Seus filhos também. Até por isso uma das características marcantes de sua gestão é o estado permanente de caça às bruxas. No início do governo, os alvos da infantaria do capitão eram petistas, socialistas e comunistas, reunidos sob o manto da ameaça vermelha. Como esses adversários se mostraram inofensivos, os bolsonaristas passaram a acossar os próprios bolsonaristas. Alguns dos embates são públicos e notórios. Outros se desenrolam longe dos holofotes e resultaram na redenção de um velho instrumento de guerrilha política. Durante a ditadura, a confecção de dossiês para fulminar inimigos do regime era uma prática corriqueira. Bastava fazer circular a informação de que fulano era comunista ou subversivo. Se isso não fosse suficiente, acrescentava-se algum ingrediente picante sobre a vida privada ou a intimidade da pessoa. Na administração Bolsonaro, os dossiês se disseminam como praga por Brasília, atingindo integrantes dos três poderes e revelando o nível rasteiro da disputa de poder no entorno do presidente.
Até pouco tempo atrás, a advogada Karina Kufa acompanhava processos na Justiça Eleitoral em São Paulo para políticos e partidos variados, sem ter grande projeção. Por causa dos bons resultados que conseguiu ao atuar em ações do PSL, ela caiu nas graças do presidente Bolsonaro, mudou-se para Brasília e passou a cuidar de praticamente todas as demandas judiciais da família, incluindo a disputa pelo controle do partido. A ascensão meteórica e o acesso ao presidente contrariaram interesses e geraram inimizades. Foi o suficiente para que sua biografia ganhasse adendos, reunidos em um dossiê no qual é tratada como farsante e militante de esquerda por já ter quase trabalhado na campanha do petista Alexandre Padilha ao governo de São Paulo. O dossiê também trata Karina como pessoa próxima a corruptos e cita o fato de ela ter fechado um contrato de 500 000 reais para defender um delator da JBS. Karina seria tão dissimulada, segundo o papelório apócrifo produzido contra ela, que teria se divorciado do marido, também advogado, só no papel, mas não na prática. Tudo para esconder a ligação com clientes envolvidos em escândalos de corrupção.
No texto anônimo, os rivais da advogada ainda espalham que ela só passou a colher bons resultados nos processos em que atua porque mantém um caso amoroso com um ministro de tribunal superior. “Essa mulher deve ter inimigo pra caramba”, afirma um político do PSL, partido no qual o dossiê circula livremente. Karina já prestou serviços à legenda, mas virou inimiga desde que Bolsonaro resolveu deixar a sigla e fundar o partido Aliança pelo Brasil. A advogada não tem dúvida de que os caciques do PSL produziram a peça. “Podem vasculhar minha vida à vontade. Não vão achar absolutamente nada”, disse a VEJA. Ela acrescentou que há fatos verdadeiros na miscelânea de informações do dossiê, como a fracassada negociação para trabalhar para Padilha e o contrato com a JBS, mas negou as acusações feitas contra ela. “Mulher sempre tem de se envolver com alguém para ter sucesso”, ironiza. Como no passado, a questão comportamental se tornou ingrediente quase obrigatório nos dossiês. Um deles, como se sabe, foi decisivo para a escolha do vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro.
A história voltou à tona no último dia 13, quando o presidente, ao receber parlamentares em seu gabinete, afagou o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP). Durante a audiência, Bolsonaro virou-se para Orleans e Bragança e disse: “Queria lhe pedir desculpas. Ficou chato. Se não fosse o que aconteceu, o vice seria você”. O que aconteceu foi o seguinte: na manhã de 5 de agosto de 2018, data-limite para a formalização das chapas eleitorais, Gustavo Bebianno, à época coordenador da campanha de Bolsonaro e presidente do PSL, ligou para Orleans e Bragança e o informou de que ele não integraria mais a chapa. O motivo? Bolsonaro havia recebido um vídeo em que Orleans e Bragança participava de uma orgia gay, além de uma foto em que ele aparecia chutando um morador de rua. Até hoje não há prova de que o vídeo e a foto existam. Também não se sabe a autoria do dossiê. O fato é que seus idealizadores, ao utilizá-lo, conseguiram tirar o posto de vice do deputado. Orleans e Bragança nega que a orgia e a agressão tenham ocorrido. “Nem sei onde é que se faz isso.”
A fabricação de dossiês atravessou os governos democráticos. Eles já foram usados numa tentativa de desestabilizar o mandato do tucano Fernando Henrique Cardoso e de prejudicar o candidato do PSDB que enfrentou o PT em 2006 (veja o quadro). Durante a ditadura, o Serviço Nacional de Informações (SNI) produzia dossiês a granel. No poder, o capitão Bolsonaro, ladeado por generais, pôs em funcionamento uma engrenagem parecida. Sob sua batuta, aliados levantam informações desabonadoras sobre rivais, externos ou internos, e usam-nas como trunfo para conquistar poder. Um auxiliar do presidente disse a VEJA que Bolsonaro abriga no Planalto um militar de sua confiança que é responsável por receber e filtrar informações. Ele analisa denúncias e relatórios de inteligência que, a depender do conteúdo, podem ser levados ao conhecimento do chefe. Em tese, esse trabalho caberia à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas, na prática, não é feito pelo órgão, devido — acredite se quiser — a um dossiê. Bolsonaro não confia na Abin porque recebeu, logo no início do mandato, um papelório que listava petistas lotados na agência. O texto trazia nomes dos funcionários, seus cargos e atribuições, além de mensagens deles de apoio ao candidato do PT à Presidência, Fernando Haddad.
Os dossiês começaram a frutificar antes mesmo da posse do presidente. Durante a transição, o futuro ministro Gustavo Bebianno foi acusado de integrar um grupo terrorista porque se reuniu com empresários muçulmanos a fim de tratar da certificação para a exportação de carnes brasileiras. O encontro foi registrado numa foto. “Levaram ao presidente um dossiê de que eu seria um terrorista infiltrado. E aí o Jair me chamou: ‘Precisamos conversar’”, contou Bebianno, que tomou um puxão de orelha na época mas assumiu o cargo de ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, até ser demitido, em fevereiro. Já o ex-senador Magno Malta não sobreviveu às investidas. Malta, que se considerava amigo pessoal do presidente, estava cotado para comandar um ministério, porém teve sua indicação descartada depois que Bolsonaro foi alertado de que o ex-senador, antes mesmo de assumir a cadeira, estava se reunindo com empresários, viajando em jatinhos particulares e prometendo vantagens a terceiros. Malta jura que esses encontros nunca aconteceram. “É tudo falácia”, disse. Mas os dossiês seguiram fazendo vítimas com o respaldo de importantes assessores do presidente.
Ex-aliado de Bolsonaro, o deputado federal Julian Lemos (PSL-PB) acusa o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, de fabricar dossiê contra ele. Oliveira, que é amigo de Bolsonaro, teria vasculhado a vida do parlamentar. A apuração foi registrada num texto de duas páginas intitulado “A verdadeira face do Julian Lemos”. Lá, além de informações pessoais, estava uma lista de processos a que o deputado respondia, inclusive um por agressão à ex-mulher. “Fui vítima de desconstrução. Ninguém está seguro perto do Jair. É pior do que o PT”, afirmou Lemos. Procurado, o ministro Jorge Oliveira não se manifestou. No início do mês, VEJA revelou que outro aliado de Bolsonaro, o deputado Luciano Bivar, também foi alvo de dossiê elaborado por pessoas da confiança do presidente. O texto relatava que Bivar era suspeito de assassinar uma ex-namorada. Essa suspeita, que carece de confirmação, foi usada contra o deputado para pressioná-lo a deixar o comando do PSL.
O deputado Júnior Bozzella (PSL-SP) também enfrentou o peso de um calhamaço apócrifo sobre os ombros. Durante a campanha, ele teve atritos com Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, que queria impedir sua candidatura. Para tanto, aliados de Eduardo fizeram circular nos bastidores a versão de que Bozzella era ligado ao Primeiro Comando da Capital (PCC) e atuava num esquema de tráfico de drogas no Porto de Santos. “Chega a parecer piada”, disse Bozzella a VEJA. O troco também veio em forma de dossiê. Circulou um calhamaço de papéis e mensagens entre os dirigentes do partido que acusava Eduardo de comandar um esquema de fraude, venda de diretórios e até uso de dinheiro do partido para financiar despesas de seu casamento.
Empregados em larga escala no Legislativo e no Executivo, os dossiês também assombram os gabinetes do Judiciário. A suspeita paira como nuvem sobre o julgamento, iniciado na quarta-feira, em que o Supremo debate os limites do compartilhamento de informações por órgãos de inteligência financeira. Primeiro a votar no caso, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, foi assertivo: “Ficam formando dossiês sem elementos concretos de investigação. Talvez o mais importante aqui seja a questão da supervisão judicial, para evitar abusos que servem apenas para assassinar reputações sem ter elemento ilícito”. Ao lado do ministro estava o procurador-geral da República, Augusto Aras. Quando era apenas cotado para o cargo, Aras se sentiu obrigado a prestar esclarecimentos pessoalmente a Bolsonaro sobre um dossiê que incluía uma foto dele ao lado de petistas. A imagem estava acompanhada da informação de que o candidato a procurador também cultivava uma sólida amizade com o ex-ministro José Dirceu, condenado por corrupção nos escândalos do mensalão e do petrolão. Eram indícios “evidentes” de mais um esquerdista infiltrado. O procurador conseguiu convencer o presidente de que seus vínculos com a esquerda eram meramente imaginários. Nem todas as vítimas de dossiês em Brasília têm a mesma sorte.
As armações que custaram caro
A fabricação de dossiês contra adversários políticos já resultou em escândalos memoráveis. Em 1998, o presidente Fernando Henrique Cardoso era candidato à reeleição e Lula o seu principal rival. Meses antes do pleito, divulgou-se um conjunto de documentos que, se verdadeiros, fulminava não só a candidatura tucana como toda a cúpula do PSDB. O conteúdo do material, de fato, era impressionante. Havia provas e testemunhos convincentes de que o presidente, alguns de seus ministros e políticos do partido mantinham contas secretas no exterior com saldo superior a 360 milhões de dólares. Até se descobrir que tudo era uma grande armação produzida por estelionatários para interferir no processo eleitoral, passaram-se quase três anos. A Polícia Federal identificou os responsáveis pela montagem, os financiadores, os vendedores e os compradores do chamado Dossiê Cayman. O PT de Lula, na época, recebeu uma cópia do material, mas teria se recusado a usá-lo — certamente, não por apuro ético.
No governo Lula, a prática do PT de produzir dossiês contra adversários foi desmascarada. Em 2006, na véspera das eleições, a PF prendeu em flagrante militantes do partido e um grupo de estelionatários no momento em que negociavam um conjunto de documentos falsos que seria usado para atingir o ex-ministro José Serra, então candidato ao governo de São Paulo e o principal adversário do ex-ministro Aloizio Mercadante. Os petistas foram presos com 1,7 milhão de reais em dinheiro e os estelionatários, com os documentos falsos que ligavam Serra a uma máfia que fraudava licitações no Ministério da Saúde. À época presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro Marco Aurélio Mello chegou a dizer que o caso era “muito pior que o Watergarte”, em referência ao escândalo de espionagem americano que levou à queda do presidente Richard Nixon.
As investigações, no entanto, pouco avançaram sobre petistas graúdos, apesar da constatação de que houvera a participação direta de figuras influentes e conhecidas como o ex-presidente do partido Ricardo Berzoini e um ex-segurança de Lula, que, como sempre, se apressou em dizer que não sabia de nada e chamou os companheiros de “aloprados”. Em 2017, já durante a Operação Lava-Jato, um ex-executivo da empreiteira Odebrecht revelou que o dinheiro usado para comprar os documentos falsos contra Serra era oriundo das empresas envolvidas no escândalo do petrolão. O plano dos petistas era espalhar o dossiê misturando acontecimentos reais com depoimentos e documentos forjados, exatamente como no episódio Cayman. Como naquela ocasião, até que o tucano conseguisse explicar que aquilo não era o que parecia, o estrago político já estaria feito.
FOTOS: Cristiano Mariz; Reila Maria/Ag. Câmara; Mauro Pimentel/AFP; iStock/Getty Images
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662