A ascensão dos generais
Com a esperada vitória de Bolsonaro, pela primeira vez desde a volta da democracia, o grupo mais poderoso de um governo é egresso da caserna
Não acontecia desde o tempo em que o presidente da República usava óculos escuros e se chamava João Baptista Figueiredo (1979-1985). Se o mais provável ocorrer no dia 28 e Jair Bolsonaro vencer as eleições, os militares farão sua reentrada na cena política brasileira em grande estilo. Como está configurada hoje, a equipe encarregada de planejar um eventual governo Bolsonaro é quase toda formada por egressos da caserna. Dos quatro integrantes principais, apenas um — o economista Paulo Guedes — é civil. Os outros três são generais. Os militares são neste momento o grupo mais poderoso do protogoverno Bolsonaro não apenas porque encabeçam sua formulação e têm a confiança do candidato, mas também porque estão prestes a controlar um orçamento de 245 bilhões de reais. Esse valor — 20% do total aprovado pelo Congresso para 2019 — é a soma do que está destinado às quatro pastas com que Bolsonaro acenou até o momento à categoria: Defesa, Educação, Infraestrutura e Ciência e Tecnologia.
Além do próprio candidato, capitão reformado do Exército, seu núcleo duro de campanha conta com o vice, general Hamilton Mourão, e três auxiliares: Augusto Heleno Ribeiro Pereira e Oswaldo Ferreira, de quatro estrelas, e Aléssio Ribeiro Souto, de três. O primeiro, coordenador do programa de governo e indicado como possível titular da Defesa, é o mais próximo do presidenciável. Aos 70 anos de idade, foi o primeiro comandante da bem-sucedida missão de paz da ONU no Haiti. Tido como conciliador e maleável, é bastante respeitado nas Forças Armadas. Até há pouco tempo, o atual comandante-geral do Exército, Eduardo Villas Bôas, o tinha como conselheiro. Como comandante militar da Amazônia, contudo, causou confusão e chegou a provocar um mal-estar entre o Exército e o governo Lula ao afirmar que a demarcação de terras indígenas era “lamentável, para não dizer caótica”. Está na reserva desde 2011.
Braço-direito de Heleno, o general Oswaldo Ferreira é o responsável pelos projetos de infraestrutura e possível titular da pasta de mesmo nome. Ele foi convidado por Bolsonaro para integrar sua equipe pouco depois de entrar para a reserva, em abril do ano passado. Engenheiro formado pela Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), chefiou o Comando Militar do Norte. Já deu mostras de ter opiniões para lá de contundentes. Recentemente, queixou-se da fiscalização ambiental em obras, comentando que, quando era um jovem tenente, não havia “nem Ibama nem Ministério Público para encher o saco”. Entre as grandes ambições do general está a conclusão das obras da usina Angra 3 (leia o quadro na página ao lado). A área de Ferreira é hoje a que oferece maior potencial de colisão entre o grupo dos militares e o economista Paulo Guedes. Cotado para o Ministério da Fazenda, Guedes elabora um plano radical para privatizar 1 trilhão de reais em ativos e passar à iniciativa privada uma miríade de obras de infraestrutura, cujo valor das concessões serviria para abater da dívida pública. Ferreira, devoto da escola desenvolvimentista de Ernesto Geisel e Dilma Rousseff, acredita que cabe ao Estado induzir o crescimento, inclusive por meio da retomada de obras — o que confronta diretamente as ideias privatistas de Guedes.
O terceiro general de Bolsonaro, Aléssio Souto, na reserva desde 2011, é o menos próximo dos generais do Exército ainda na ativa. Responsável pela elaboração dos programas na área de educação e ciência e tecnologia, é do tipo que gosta de externar opiniões inflamadas. Assíduo frequentador da seção de cartas do jornal O Estado de S. Paulo, já defendeu uma “intervenção militar” para colocar “a democracia nos devidos eixos”. Nada muito diferente do que já foi dito pelo general Mourão, que nos últimos tempos tem deixado cada vez mais clara sua indisposição para ser um vice de caráter apenas decorativo.
Com exceção de Mourão, os três generais de Bolsonaro costumam se reunir diariamente no subsolo do hotel Brasília Imperial, no Setor Hoteleiro Sul da capital federal, onde, entre goles de café e pão de queijo, discutem os rumos do país. A esse grupo se somam, com frequência inconstante, pelo menos outros quinze militares, com menor grau de proximidade com Bolsonaro, entre eles o brigadeiro Ricardo Machado e o astronauta e tenente-coronel da Força Aérea Brasileira (FAB) Marcos Pontes, já convidado por Bolsonaro a assumir o Ministério de Ciência e Tecnologia. Os participantes se dividem entre seis grupos temáticos que incluem segurança, saúde e meio ambiente. O elo entre todos eles é Waldemar Gonçalves Ortunho Junior, coronel reformado do Exército e encarregado de compilar as propostas e enviá-las para Bolsonaro.
Em reunião recente, a discussão girou em torno de uma medida considerada vital para a política educacional de um futuro governo Bolsonaro: cortar o “viés ideológico de esquerda” que o capitão e seus aliados creem que domina o atual currículo escolar. Como remédio, o programa do general Aléssio Souto pretende vetar disciplinas sobre diversidade, discussão de gênero e afins. No meio da conversa, contudo, um professor lembrou que uma mudança radical nesse sentido poderia provocar protestos, principalmente no meio universitário. Os presentes, então, passaram a debater como reagir a uma situação assim. Um dos militares respondeu de pronto: cerca-se o câmpus, controla-se o acesso de forma a identificar quem entra e quem sai. É a visão militar em sua versão mais rudimentar — quando há um problema, basta traçar uma linha reta até a solução.
Os militares perderam espaço na vida política do Brasil na mesma medida em que avançou a redemocratização. Na gestão Sarney (1985-1989), a primeira de um civil depois de 21 anos de ditadura, um capitão comandou a Ciência e Tecnologia e a Previdência Social, e generais chefiaram os ministérios do Exército, da Aeronáutica e da Marinha. Fernando Collor (1990-1992), durante a campanha, incluiu os integrantes da corporação na categoria de “marajás”, mas escalou os coronéis da reserva Jarbas Passarinho e Ozires Silva para chefiar áreas fulcrais, como a Justiça e a Infraestrutura. Dali para a frente, os militares foram perdendo poder e orçamento e ficaram 26 anos longe do comando do Executivo. Tal situação só foi interrompida em fevereiro deste ano, quando o presidente Michel Temer escalou o general Joaquim Silva e Luna para chefiar a Defesa e delegou ao Exército a tarefa de assumir a segurança pública do Rio de Janeiro.
Uma pesquisa feita pelo Datafolha em junho mostrou que 78% dos brasileiros consideram as Forças Armadas a instituição mais confiável do país. É um número assombroso, principalmente quando comparado à popularidade do Congresso, no qual 67% dos brasileiros declaram não confiar. Especialistas concordam que o protagonismo militar num país aumenta à medida que a crise do seu sistema político se aprofunda — é frequente que líderes impopulares se valham do prestígio das Forças Armadas para melhorar a própria imagem.
Os militares podem atuar como forças moderadoras ou gerar instabilidade, dependendo do governo em questão. Nos Estados Unidos, país que nunca teve um regime militar autoritário, é comum a participação de oficiais aposentados na política, seja em cargos eletivos, seja como conselheiros. Em governos como o de Donald Trump, eles têm sido um fator de contenção dos instintos mais primários do presidente. Em seu recém-lançado livro sobre os bastidores da Casa Branca, o jornalista Bob Woodward, célebre pela cobertura do escândalo Watergate, relata uma passagem em que Trump ordena que o secretário de Defesa, Jim Mattis, elabore um plano para assassinar o ditador sírio Bashar Assad. Mattis disse que obedeceria, mas não o fez. “O fato de, em Washington, os generais serem vistos como agentes que estabilizam a política deriva de as instituições nos EUA serem muito fortes”, diz Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas.
É uma realidade muito distinta da de Venezuela e Cuba, dois países em que os militares participam ativamente da política, mas com uma diferença fundamental: lá, o envolvimento das Forças Armadas é institucional, e não individual — como acontece na campanha de Bolsonaro, por exemplo. Tanto na Venezuela como em Cuba, os militares, como administradores, revelaram-se um rematado fracasso, mas, mais do que isso, puseram uma instituição a serviço de um governo, não do Estado.
O grande risco da participação militar em um governo é exatamente a contaminação política das Forças Armadas. No Brasil, pelo menos até aqui, não há sinal dessa deterioração. As Forças Armadas, como instituição, permanecem exemplarmente neutras do ponto de vista político. O Alto-Comando do Exército, inclusive, não enxerga ganhos no que chama de “imersão da força no ambiente político”. Os comandantes temem que um eventual fracasso de Bolsonaro possa respingar na instituição. O sucesso, por outro lado, também poderia trazer complicações ao aprofundar uma simbiose encarada como indesejável. No intento de separar a função da caserna da imagem dos prováveis ministros, o Exército prepara um documento que, a pretexto de tratar da sucessão do general Villas Bôas, reafirmará sua natureza de instituição a serviço do Estado e não de governos. Que assim seja.
De volta aos anos 70
Com larga vantagem nas pesquisas, Jair Bolsonaro tem ventilado a ideia de escolher Oswaldo Ferreira no rol de generais para ser o comandante de um superministério de Infraestrutura, que, por sinal, ainda não foi bem explicado, mas encamparia Transportes, Portos e Aviação Civil e Minas e Energia. Hoje na reserva, Ferreira sente-se à vontade para dar entrevistas sobre as áreas que podem estar sob seu controle no eventual governo do PSL, demonstrando até certo saudosismo dos anos 1970, quando era tenente no Departamento de Engenharia e Construção do Exército. Nostálgico da ideia de “Brasil grande”, ele defende a construção de grandes hidrelétricas na Amazônia e a retomada de Angra 3, usina nuclear na costa do Rio de Janeiro.
Controversa, a finalização de Angra 3 terá um custo elevado. Com apenas 60% de obras prontas e mais de 10 bilhões de reais já investidos, estima-se que sejam precisos mais 17 bilhões para que ela seja terminada. O governo não tem essa folga no caixa, e a única solução seria a entrada de capital privado na empreitada. A gestão Temer até iniciou tratativas com empresas chinesas interessadas no negócio, mas Bolsonaro tem dito que energia é setor estratégico e, portanto, território proibido para a potência asiática.
De um jeito ou de outro, a dinheirama necessária para a conclusão de Angra 3 seria repassada ao consumidor através da conta de luz, a uma tarifa altíssima, uma vez que subsídios estão fora de cogitação. Estimativas mostram o custo do megawatt-hora de Angra 3 a 480 reais, contra apenas 79 reais na usina hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo.
Embora a energia gerada por grandes hidrelétricas na Amazônia seja mais barata, sua construção também tem um desembolso elevado. Belo Monte, o maior projeto da região, ainda não foi terminada e custou mais de 30 bilhões de reais. Seu reservatório é a fio d’água — ou seja, foi desenhado para que a área de floresta alagada fosse a menor possível. Ferreira criticou a escolha, que implica uma produção reduzida de energia no período de estiagem. Para que a geração seja contínua, é preciso construir reservatórios maiores. E é aí que mora o problema. Por ser a Amazônia uma região plana, é necessário alagar áreas muito extensas para que as represas tenham uma queda d’água forte o suficiente para rodar as turbinas geradoras. “É preciso analisar os aspectos do que chamamos de tripé da sustentabilidade: social, ambiental e financeiro”, diz Claudio Salles, presidente do Instituto Acende Brasil. Antes de partir para novas usinas no Norte do país, talvez fosse mais eficiente resolver a barafunda jurídica que o governo Dilma criou ao baixar os preços da conta de luz na marra, medida contestada na Justiça até hoje — um problema que afugenta novos investidores e congela projetos.
Felizmente, a voz do general Ferreira sobre energia não é a única na campanha de Bolsonaro. Capitaneada por Luciano de Castro, professor na Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, uma equipe de técnicos trabalha nas recomendações ao líder das pesquisas. Uma delas, inclusive, é a de privatizar a Eletrobras (com ou sem chineses). No mercado, espera-se que essas vozes sejam ouvidas com mais intensidade do que as que sentem falta de um passado faraônico.
Bianca Alvarenga
Antigos subversivos
O professor Antônio Flávio Testa, de 67 anos, é cientista político, doutor em sociologia, antropólogo, administrador, mestre em artes marciais e, nos últimos meses, integra a equipe que formata o programa de governo do candidato Jair Bolsonaro. Ele presta consultoria na elaboração de propostas, produz textos e faz contatos com organismos nacionais e internacionais sobre os temas em discussão. O grupo que está finalizando o plano é liderado por três generais e um brigadeiro — especialistas nas áreas de defesa, transportes, educação, ciência e tecnologia. Testa é um dos poucos civis incluídos na lista de pessoas autorizadas a participar de todas as reuniões, inclusive as que envolvem “assuntos estratégicos”. Sua posição converge com a dos militares em muitas questões, mas nem sempre foi assim.
A foto ao lado faz parte de um dossiê do extinto Serviço Nacional de Informações, o famigerado SNI, braço estatal da vigilância e da repressão política durante a ditadura. Em 1977, Testa, então com 26 anos, foi alvo de uma investigação que levou à sua prisão e à de vários estudantes acusados de “assumirem caráter contestatório ao regime e às autoridades constituídas” e de praticarem “ilícitos contra a segurança nacional”. O “crime” em questão era compor uma chapa para disputar o comando do diretório estudantil da Universidade de Brasília (UnB). Na época, isso era considerado um ato de subversão. O propósito dos estudantes — “lutar pela liberdade de expressão”, “contra a censura” e por “melhores condições de vida” – era altamente comprometedor para os militares que estavam no poder.
“Naquela época, eu apenas compartilhava da utopia de liberdade democrática dos estudantes, mas não tinha nenhuma ligação com partidos políticos”, explica o professor, dizendo-se surpreso em saber que era monitorado pelos serviços de inteligência do regime militar e da existência de um dossiê sobre o episódio. Ele lembra que foi detido e levado a uma repartição federal em Brasília, onde passou a noite. Sem mandado judicial, sem inquérito e sem que Testa soubesse do que era acusado, os agentes lhe fizeram uma única pergunta: “Você é o chefe?”. Por acaso — e talvez para sua sorte —, entre os arapongas que o prenderam havia um ex-aluno dele de caratê, que o reconheceu e decidiu “aliviar”. Testa não vê nenhum problema em trabalhar com os militares agora. “São épocas diferentes. Hoje, eu acredito no projeto do Bolsonaro”, diz.
Há outro “ex-subversivo” na cúpula que elabora o programa de governo do candidato do PSL — esse considerado um elemento ainda mais perigoso por causa de suas ligações com os comunistas. Professor da UnB, o cientista político Paulo Kramer, de 61 anos, traça cenários e estratégias de ação que deverão nortear o futuro governo Bolsonaro no Congresso. O professor também foi vigiado pelo Exército durante a ditadura na década de 80. No relatório com carimbo de “confidencial” (acima, veja a reprodução do documento), Kramer, aos 24 anos, é investigado por ser empregado de uma livraria do Rio de Janeiro “que seria de propriedade do PC do B”. “Eu era mesmo comunista, mas não sabia que a livraria era front do partido”, disse o professor, que também se sente confortável em colaborar com o projeto de Bolsonaro ao lado de militares. Ele participa ainda da elaboração de um conjunto de medidas que deverão ser anunciadas logo nos primeiros dias de governo. “Eu vi lá atrás que os grupos de esquerda queriam substituir uma ditadura autoritária de direita por uma ditadura totalitária de esquerda. Posso dizer que fiz uma viagem da extrema esquerda para a direita”, afirmou Kramer.
Hugo Marques
Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605