“Racismo é crime”, diz Javier Tebas, presidente da LaLiga
O espanhol anuncia medidas de punição aos ataques preconceituosos no futebol e fala sobre a expansão internacional da entidade
Um dos dirigentes de futebol mais influentes do mundo, o advogado espanhol Javier Tebas, de 61 anos, ocupa há mais de uma década a presidência da Liga Nacional de Fútbol Profesional, também conhecida como LaLiga, associação esportiva responsável pelo campeonato de clubes, da qual fazem parte ícones como o Real Madrid e o Barcelona — já a Real Federación Española de Fútbol zela pela seleção e pela Copa do Rei, equivalente à Copa do Brasil. Durante a gestão de Tebas, a entidade passou por mudanças relevantes, como uma bem-sucedida expansão internacional e uma reforma econômica que equilibrou as contas da instituição, além de diminuir a disparidade entre os clubes. Agora, LaLiga enfrenta dois grandes desafios: acabar com a pirataria nas transmissões esportivas e impedir a criação de uma superliga europeia. Tebas, contudo, teve ele mesmo de enfrentar confusões pessoais. Criou ruído ao apoiar o Vox, o partido de extrema direita da Espanha. Foi criticado, também, por ter dito, nas redes sociais, que o brasileiro Vinicius Jr. exagerava nas denúncias de racismo. Não demorou a pedir desculpas e deu as mãos ao atacante, por sabê-lo influente, sobretudo agora, escolhido como o melhor atleta da Champions League, vencida pelo Real Madrid, e candidato a melhor do mundo. Em visita recente ao Brasil, para participar do Sports Summit, Tebas conversou com VEJA. A seguir, os melhores trechos da entrevista.
Os episódios de racismo contra Vinicius Jr. em partidas da Liga espanhola não cessam. Até quando veremos esses ataques? Não sabemos dizer quando vai acabar. O que podemos fazer é empregar todos os meios possíveis e legais para acabar com eles. É isso que estamos fazendo.
O que tem sido feito? Desde o caso do ano passado, intensificamos muito nossas ações. Lançamos uma campanha especial chamada Vs Racism nos estádios da Espanha, todos os fins de semana, e continuamos com ela. Também estamos atentos nas esferas jurídica e política. É um modo de podermos agir de forma mais imediata.
Qual é a relevância de Vinicius Jr. na briga? Ele tem sido muito corajoso. Os líderes, inclusive nós, diretores, somos alvos de ataques mais intensos do que outras pessoas. O Vinicius Jr. desperta essa atenção porque está na vanguarda de uma luta relevante contra o racismo. Esse tipo de liderança atrai os insensatos e criminosos. Quem é racista ou incentiva o racismo, na Espanha, é criminoso.
Os times têm colaborado? Sim. Com o apoio dos dirigentes, em intensa parceria, os sistemas de câmeras de segurança detectam os agressores ainda antes de os jogos terminarem. Eles são expulsos do recinto imediatamente e proibidos pelos próprios clubes de retornar.
“Vinicius Jr. tem sido muito corajoso. Ele desperta atenção porque está na vanguarda de uma luta relevante contra o racismo. Esse tipo de liderança atrai os insensatos”
O senhor chegou a pedir que a Federação de Futebol, que cuida da seleção e da Copa do Rei, desse mais competências para a Liga agir contra racistas. O que faria se houvesse, de fato, essa prerrogativa? A Federação já adota algumas medidas, mas gostaria que fossem mais ágeis. Uma delas é o fechamento parcial da arquibancada, nos locais de onde partem os insultos em grupo. A expulsão automática dos torcedores, sem necessidade de consentimento do clube, também seria decisiva. É o que estamos pedindo. Com nosso sistema de segurança, poderíamos localizar muitas das pessoas que proferem os xingamentos, onde quer que estejam no estádio. É difícil, mas não impossível.
Como envolver o árbitro no controle dos ataques? Estamos desenvolvendo um método mais célere de comunicação. O objetivo é que ele possa perceber o mais rapidamente possível que houve algum insulto racista no estádio. Às vezes, ele não consegue ouvir, pois está muito concentrado na partida. Trabalhamos em conjunto com a Federação, a Liga, os juízes. Esperamos poder implantar o sistema em caráter experimental nas próximas semanas.
Não é apenas o racismo. No ano passado, a Espanha testemunhou outro abuso, com o indevido beijo na boca do presidente da Federação, Luis Rubiales, na jogadora Jenny Hermoso. O escândalo acelerou alguma grande mudança? Sempre há algum efeito de conscientização em um ato como esse, de uma pessoa conhecida. Ele foi acusado de agressão sexual pelo Ministério Público, o que não é pouca coisa. Mas é vital lembrar que o problema de Rubiales não era apenas esse.
Quais eram os outros? Havia muitos outros que eu, pessoalmente, vinha denunciando por mais de cinco anos, desde que ele assumiu o cargo. Havia corrupção na Federação. O assédio foi a ponta do iceberg.
A Liga experimentou uma grande expansão na última década, mas também imensos obstáculos, além do racismo. Qual o maior desafio? A pirataria nos prejudica, como aliás em outras competições e outros setores de entretenimento. A fraude é o que nos impede de crescer. Sempre há vontade de expansão, mas talvez seja a hora de um freio de arrumação. O crescimento exige cuidado.
Que tipo de cuidado? O problema é que estamos crescendo sem monetização, então, estão nos roubando, não é? É nisso que estamos bastante focados agora, em deter aqueles que assistem ao futebol sem pagar. E está acontecendo em todo o mundo. É muito grave e gera perdas enormes para o setor.
Que medidas estão sendo tomadas para combater a pirataria? Temos uma unidade de combate à pirataria com quase 35 pessoas trabalhando dia e noite. Investimos muito em tecnologia. Temos várias ferramentas que nos permitem saber, em todo o mundo, em quais IPs e servidores estão sendo transmitidos ilegalmente conteúdos da Liga, da Premier, da HBO, da Netflix, de tudo. Há cerca de 46 000 pontos transmitindo conteúdo ilegal quase todos os dias.
E qual o principal desafio? Essa batalha precisa ocorrer de país a país, porque é uma questão de legislação. No fundo, a solução é impedir que os clientes das empresas de internet tenham acesso aos IPs que estão transmitindo esse conteúdo. Também estamos conversando com o Google, com a Apple, com as big techs que oferecem plataformas de diversão. Até agora conseguimos que retirem aplicativos da Play Store ou da Apple Store, mas queremos um passo ainda mais fundamental, que é remover os aplicativos dos celulares mesmo depois de já terem sido baixados. Mas não é só isso. Existem canais no Telegram com dezenas de milhares de pessoas onde se conseguem os links para as transmissões clandestinas: “Clique neste link e verá o jogo gratuitamente”. Então, estamos trabalhando com tudo isso. Na América Latina, nosso principal foco é o Magic Television (conhecido popularmente como gato). Enquanto essas pessoas não forem presas, o problema não vai acabar.
O streaming, que tem sido oferecido no lugar das transmissões em TV aberta e mesmo por assinatura, seria um bom caminho para combater a pirataria? Depende muito do potencial mercadológico, se a plataforma é gratuita ou se se trata de algum tipo de assinatura, como o YouTube Premium. Essas alternativas vão surgir, mas dependerão da recepção do mercado. Nos Estados Unidos e na Europa, por exemplo, a televisão por assinatura é muito madura, então, a solução provavelmente não seria essa. É uma possibilidade, mas creio que para produtos globais será um desafio imenso impor esse tipo de modelo. Talvez funcione para mercados locais. A questão é que financiar um evento esportivo de relevância como o da LaLiga apenas com publicidade é muito difícil.
Para a temporada de 2025, planeja-se levar jogos da La Liga para os Estados Unidos. Haverá partidas no Brasil também? Veremos. Primeiro, precisamos ver se será mesmo no próximo ano. Temos a ideia de levar partidas para fora da Espanha, e o mercado americano seria interessante. Por enquanto, não propus outros lugares porque é tudo ruidoso, repleto de detalhes, mas a maioria dos clubes quer e a Liga quer. Agora, estão preparando uma regulamentação. (No congresso da Fifa, em Bangcoc, o tema começou a ser discutido.)
Mas, enfim, os torcedores brasileiros podem se animar, como já contam com a realização em São Paulo de uma partida da NFL? Acho que não deve haver muitos jogos fora dos países da competição. Talvez o Brasil possa ser um desses lugares. Não podemos esquecer que sempre houve muitos jogadores brasileiros na liga espanhola. Somos muito próximos dos torcedores e dos jogadores brasileiros. Nunca se pode descartar algo parecido, mesmo num futuro distante. Mas uma coisa é certa: teremos apenas um jogo por ano, não vários, apesar de ser o desejo dos torcedores.
“A Federação já adota algumas medidas, mas eu gostaria que fossem mais ágeis. Uma delas é o fechamento parcial da arquibancada, nos locais de onde partem os insultos em grupo”
Nos últimos meses, tem havido muita discussão sobre a criação de uma superliga europeia, com a reunião de times que são a elite da elite. Como o senhor avalia essa possibilidade? Seria uma catástrofe.
Por quê? Estima-se que uma parcela de 60% das receitas de todas as competições seria destinada a essa superliga. Isso significaria salários menores para os jogadores e uma menor receita para os clubes que não participarem da competição. Além disso, os jogos nacionais teriam menor qualidade, porque boa parte do dinheiro seria transferida para os que participassem da superliga. A disparidade de receitas em nossas ligas nacionais seria ainda maior. Não funcionaria.
Uma superliga europeia poderia representar, então, o fim da Liga e de outros campeonatos nacionais? O fim da Liga como a entendemos hoje, sim. E também o fim de outros campeonatos nacionais.
Um outro tema de permanente ruído é a arbitragem, sobretudo o uso do VAR. Afinal de contas, o recurso tecnológico melhorou as decisões dentro de campo? Sempre há margem para melhorias. Nunca devemos nos contentar com o que temos. Todas as competições devem aspirar à excelência e ao melhor. E obviamente houve lances ou interpretações que podem ser melhorados em todos os aspectos. Precisamos fazer esse esforço. Os árbitros, que não estão sob nossa dependência, mas sim da Federação, precisam se aprimorar.
É o que vai acontecer? Eu, pelo menos, na minha vida, nunca me contento com o que sei, conheço e faço.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896