‘Precisamos celebrar’, diz Michel Doukeris, CEO global da AB InBev
Executivo da controladora da Ambev, a maior cervejaria do mundo, diz que associar marcas a shows como o de Lady Gaga virou uma estratégia

Desde 2021 como CEO global da AB InBev, a controladora da Ambev, maior cervejaria do mundo, Michel Doukeris, 52 anos, já rodou dezenas de países onde atua a empresa, que faturou 59,8 bilhões de dólares em 2024, para conhecer a fundo cada mercado. Mesmo com um batente puxado, ele acorda às 5 da manhã para fazer exercícios. Outro hábito diário sagrado envolve beber sempre uma cerveja — alterna rótulos com álcool e sem álcool. Engenheiro químico, Michel está há quase três décadas na companhia, já tendo liderado operações na Ásia, na América do Sul e na América do Norte. Uma de suas estratégias hoje é atrelar marcas a eventos como o de Lady Gaga, no Rio de Janeiro. Ao saber que ela se apresentaria nas areias de Copacabana, logo entrou no circuito e fez da Corona a patrocinadora do megashow de sábado, 3 de maio. Recém-chegado da Bélgica, o executivo concedeu a VEJA esta entrevista, no hotel Copacabana Palace, no Rio, em que fala sobre como é liderar um negócio presente em cerca de 150 países e dos desafios de acompanhar as tendências que vão surgindo e de lidar com as constantes mudanças de hábitos dos consumidores.
Qual é a estratégia da empresa ao patrocinar grandes eventos como o show de Lady Gaga no Rio? Posicionar marcas é uma arte. Muita gente tenta, mas poucos conseguem. A mensagem da Corona, que está completando 100 anos, sempre foi ligada ao cenário praiano. Ela começou no México com a proposta de ser uma pale lager, com sabor diferenciado e embalagem única, uma garrafa transparente que nenhuma outra cerveja tem, já que a luz pode alterar a fórmula. O cenário, o aniversário — tudo isso casou com esse show, que pode se tornar um dos maiores da história.
Qual a importância do mercado brasileiro para a Ambev? O Brasil é um de nossos cinco maiores mercados. Além de estar crescendo, é um lugar onde aprendemos muito. A cultura brasileira é, afinal, cervejeira. O país é também um celeiro de bons profissionais. Sempre tem um brasileiro nas diversas sedes da companhia.
Qual o perfil do consumidor nacional de cerveja? Cerveja é uma categoria de produto presente no dia a dia. Ela é democrática. Você vê homem e mulher tomando, jovens e pessoas mais velhas curtindo a bebida com os amigos ao redor de uma mesa de bar. Ao contrário de gente de outras nacionalidades, o brasileiro gosta muito da cerveja tipo lager, por causa do clima quente. É fácil de beber na praia, na piscina, no churrasco.
A Heineken tem aumentado sua participação no Brasil. Há uma nova guerra de cervejas entre ela e a Corona, a exemplo do que aconteceu com Brahma e Antarctica, duas marcas também da Ambev? A competição é bem-vinda, ajuda a desenvolver o setor e estimula o investimento na inovação e nas próprias marcas. As nossas competem em todos os segmentos e contamos com alguns campeões locais. Há uma particularidade interessante do consumidor brasileiro: ele costuma se movimentar entre diferentes rótulos.
“Já investimos mais de 1 bilhão de dólares no consumo responsável de álcool. Acreditamos que as pessoas têm liberdade para tomar suas próprias decisões”
No passado, a publicidade de cerveja centrava em imagens de mulheres de corpo escultural e até em animações de sucesso entre o público infantil. Isso acabou de vez? A publicidade brasileira é um celeiro de criatividade. Alguns dos melhores profissionais do planeta estão presentes e atuantes aqui. Mas ela não existe separada da sociedade e do momento que vivemos.
O politicamente correto veio para ficar? A definição do que é politicamente correto varia ao longo dos anos e de país para país. O que é vital é estar próximo ao consumidor. Sempre acompanhamos as tendências e seguimos as normas. Nos autorregulamos, por exemplo, para termos um corte etário em nossa propaganda, de 25 anos, bem acima dos 18, que é o limite legal. Somos muitos éticos nesse sentido.
Em 2023, a marca Bud Light, que faz parte do portfólio da empresa, contratou uma influencer trans nos Estados Unidos e despertou a ira de consumidores de perfil mais conservador. Como avalia esse episódio? Muitas coisas aconteceram ali. Violência contra o entregador de cerveja, pessoas atirando pedras. Foram diversas críticas. Aprendemos bastante com esse episódio. Desde ficar mais próximos da marca até assegurarmos que funcionários experientes estivessem presentes em todas as etapas do processo. Apoiamos os nossos empregados nessa crise, não demitimos ninguém. Nos Estados Unidos, aliás, estamos ganhando mercado.
A polarização política observada no mundo de hoje torna mais difícil vender para diferentes públicos? O importante é ser autêntico. Somos cervejeiros, então, para a gente, futebol, praia, Carnaval têm tudo a ver. E esses são momentos em que estão todos juntos, não importa a ideologia. Isso é estar próximo de nossa cultura. Você nunca estará errado quando se volta para aquilo que realmente representa.
Pesquisas de mercado têm indicado uma diminuição do interesse dos jovens pelo consumo de álcool, fatia de mercado que sempre foi motor para a indústria. Isso preocupa? A maior parte das pessoas já quase se esqueceu da covid-19, mas essa foi uma geração muito afetada pela pandemia. Minha filha, de 22 anos, fez o ensino médio nos Estados Unidos e não teve festa de formatura, momento tão importante nessa fase da vida. Ao ingressar na faculdade, estudou remotamente. Agora, já no mercado de trabalho, me perguntou como se comportar em uma happy hour. Há uma diferença grande nessa geração. Acredito que, com o tempo, comportamentos que ficaram alterados voltem à normalidade. Mas não sabemos tudo o que vai acontecer.
Cervejas zero álcool têm mais chances de atrair esse público? Investimos cada vez mais nesse tipo de produto, que conta com uma enorme participação entre essa garotada. Eles inventaram até um hábito apelidado de zebra, em que intercalam uma cerveja com álcool, outra sem. Pessoalmente, também gosto de cerveja zero. Eu sempre tomo depois de praticar esporte.
Muita gente opta por bebidas de paladar mais adocicado, os populares “ices”. Estamos assistindo a uma mudança que pode destronar a cerveja do posto de bebida mais consumida no mundo? No mundo inteiro, existe consumidor com esse paladar. São pessoas que, no passado, tomavam muito vinho e coquetel. Ao longo do tempo, passaram a querer mais conveniência ao optar por bebidas prontas. Temos claro que isso é uma grande oportunidade para expandir nosso mercado, à base de produtos de baixa e média caloria, com menos álcool e com marca que passe confiança. Nos Estados Unidos, África do Sul e Canadá já representam um nicho gigante.
Como a guerra tarifária promovida por Donald Trump, nos Estados Unidos, afeta o mercado cervejeiro? A cerveja tem uma coisa incrível: ela é local. No Brasil, são 35 fábricas e nos Estados Unidos, quinze. Operamos em mais de 100 países e, em 98% deles, a matéria-prima é produzida localmente. Acabamos, então, ficando muito isolados de fatores externos. Fatores que ocorrem todo ano, como a colheita de grãos ou o preço do alumínio, são gerenciáveis. Obviamente, estamos acompanhando o que acontece no mundo. Mas não vemos nenhum impacto para o nosso negócio.
No plano global, a empresa registrou queda de vendas na Argentina e na China, um dos principais mercados hoje. O que explica isso? Por razões distintas, as indústrias dos dois países enfrentaram muitos problemas no ano passado, o que levou a uma queda no consumo. Na China, um de nossos dez maiores mercados, estamos muito concentrados no litoral, que é a base de exportação da economia do país, justamente onde eles mais sofreram. Mas as coisas estão melhorando. Tanto na China como na Argentina já começamos a nos recuperar.
“Somos cervejeiros. Para a gente, futebol, praia e Carnaval têm tudo a ver. E esses são momentos em que naturalmente estão todos juntos, não importa a ideologia”
Estudos recentes asseguram que não há dose segura de álcool. Como a empresa lida com isso? Houve vários estudos sérios nos últimos tempos. E não necessariamente todos foram na mesma direção. Do nosso lado, a gente apoia de maneira enfática a recomendação de beber com moderação. Investimos nos últimos anos mais de 1 bilhão de dólares em campanhas em prol do consumo responsável. A partir daí, acreditamos que as pessoas têm liberdade para tomar suas próprias decisões.
A recomendação de beber com moderação é exibida nos rótulos e no fim de cada comercial. Esses alertas tendem a ficar mais severos? Eu não posso especular sobre isso, uma vez que cada país tem uma legislação. Naqueles em que não há essa obrigação, a gente usa o mesmo rótulo, as mesmas mensagens, porque, como disse, investimos no consumo responsável. A cerveja é um produto feito de ingredientes naturais, regulado pelas autoridades e que faz parte da sociedade e da cultura há mais de 5 000 anos. Atuamos sempre dentro das normas.
Qual é a grande meta da empresa hoje? Antes, para crescer, abríamos mercado comprando outras empresas. Mas há três anos nos lançamos numa jornada buscando crescimento orgânico, de nossas próprias marcas. Ano passado, cravamos recorde histórico nesse quesito. A faixa no mercado é de 4% a 8%, e nós crescemos 8,2%. Nosso maior objetivo é ter consistência no crescimento.
A empresa concluiu que o portfólio e os mercados em que atua já estavam de bom tamanho? A gente já opera em todos os grandes mercados do mundo. Não há muito mais espaço para onde ir. Além disso, começamos a desenvolver produtos tecnológicos, como a plataforma Bees, para facilitar o comércio das empresas com os pontos de venda, e outra voltada para o consumidor, o Zé Delivery. Com investimentos em nossas próprias marcas, uma gestão eficiente do portfólio e participação em grandes eventos, temos gás para seguir avançando. Esse crescimento orgânico é mais difícil, mas também mais divertido. Envolve inovação, desafio e oportunidades para o consumidor. O mundo está pedindo mais momentos para brindar e estar com amigos. Precisamos celebrar.
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2025, edição nº 2942