“Os fiscais têm sido recebidos à bala”, diz presidente do Ibama
Rodrigo Agostinho conta como o crime organizado ameaça hoje os agentes do órgão e diz que petróleo na Amazônia só depende de análise técnica
A primeira vez que Rodrigo Agostinho, de 46 anos, incluiu o Ibama em seu currículo foi na adolescência, na década de 1990, como estagiário. Não imaginava que, anos depois, voltaria ao órgão como presidente — e que assumiria o cargo em um dos momentos mais complicados da história do instituto. Advogado de formação, mas ambientalista desde cedo, iniciou sua carreira política em Bauru (SP), onde a militância o levou a ser vereador, secretário de Meio Ambiente e prefeito por dois mandatos. Em 2018, eleito deputado pelo PSB, presidiu a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara. Ao aceitar o convite da ministra Marina Silva para ingressar no governo Lula em 2023, Agostinho encontrou um Ibama desmantelado pela gestão Jair Bolsonaro e o país debaixo de críticas da comunidade internacional pelos rumos que havia tomado sua política ambiental. Em seu primeiro ano, precisou lidar com taxas de desmatamento altíssimas e reforçar ações contra a criminalidade na Amazônia — um problema que continua assombrando sua gestão. “Os fiscais têm sido recebidos à bala”, relata a VEJA. Na entrevista, ele fala também da polêmica em torno da exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, diz que a grande maioria do agronegócio não é contra a preservação e avalia que não só o Brasil, mas o mundo, não está preparado para as emergências climáticas.
O Ibama foi mesmo sucateado na gestão Bolsonaro? Chegamos a ter 6 000 servidores, mas encontramos 2 500 e um quadro bastante envelhecido. Grande parte dos escritórios foi fechada. Como o Ibama é avaliado pela capacidade de reduzir o desmatamento, fomos retomando as ações de fiscalização com várias estratégias. Por exemplo, temos um diagnóstico do Inpe que mostra que metade do desmatamento acontece em dezessete municípios da Amazônia, então priorizamos essas regiões. Trabalhamos quase num modelo de acupuntura. Começamos a utilizar muitas ferramentas de tecnologia.
Qual o balanço das multas neste primeiro ano? Só na fiscalização remota emitimos quase 1 200 autos de infração e embargamos mais de 300 000 hectares de áreas desmatadas. Outra ação que foi muito forte ao longo do ano foi o cerco ao garimpo ilegal. Fiscalizamos mais de 100 terras indígenas, destruímos 580 balsas, 150 retroescavadeiras e 358 acampamentos. Apreendemos um número recorde de 94 000 animais traficados e retomamos o combate à pesca ilegal. Aumentamos em 103% a emissão de autos de infração. Não é só um recorde. É deixar claro que o crime ambiental não compensa, é combater a impunidade.
Apesar dessa avaliação positiva, servidores do Ibama suspenderam recentemente suas atividades em campo e ameaçam greve. O que houve? O Ibama participa das negociações com as demais instâncias do governo no que diz respeito às demandas. Estamos em diálogo constante para que haja um desfecho positivo, que leve em conta as principais reivindicações, como a valorização e a reestruturação das carreiras, algo no qual estamos trabalhando desde que assumi.
“Temos sido ameaçados de maneira muito pesada. E estamos tendo de reforçar muito o treinamento na utilização de armamento, algo que nunca foi nossa prioridade”
O primeiro ano de sua gestão foi marcado também pela polêmica em torno da licença para a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas. O que falta para terminar a análise da licença? Como avalia os documentos entregues pela Petrobras? Estamos tratando de uma área muito sensível, naquela região estão 70% dos manguezais do Brasil, é uma região de muita biodiversidade. E nós estamos licenciando mais de 100 empreendimentos para a Petrobras, incluindo outras áreas na Margem Equatorial, no Rio Grande do Norte, e a quarta fase do pré-sal, com mais de 2 000 poços. A própria Petrobras tem definido em conjunto com o Ibama quais são suas maiores prioridades.
O senhor e a ministra Marina Silva já se manifestaram contra a exploração. Mas Lula indicou ser a favor, além do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, governadores e parlamentares. Considera essa uma briga perdida? Não tenho dúvidas de que a Petrobras é um orgulho para todos os brasileiros, com capacidade de entregar sempre os melhores estudos, mas a viabilidade ambiental é prerrogativa do Ibama. O Ibama não faz política energética. É assim que funciona.
O Ibama, muitas vezes, é visto como rigoroso demais em relação a empreendimentos considerados estratégicos para a economia nacional, como é o caso do petróleo na Amazônia. O senhor é muito pressionado por isso? Sim. Eu encaro isso com naturalidade. O empreendedor tem prazo, tem orçamento, quer executar a obra no menor tempo possível, mas o Ibama continua fazendo o trabalho técnico. O Brasil tem 20% das espécies vivas do planeta, é considerado o país com maior biodiversidade do mundo, há mais de 500 povos indígenas, uma complexidade social enorme, seis biomas terrestres riquíssimos. O Ibama é rigoroso porque temos uma legislação ambiental que precisa ser cumprida.
Não há muita lentidão em todo esse processo de licenciamento? Estamos licenciando 3 400 empreendimentos com menos de 200 analistas. A maior parte das atividades recebe as licenças, tivemos poucas negativas em 2023. O que eu tenho visto é que mesmo projetos muito ruins, que dão entrada com preocupações reduzidas de sustentabilidade, saem muito melhores ao final do processo. E a maior pressão que sofremos é na fiscalização, não no licenciamento.
De onde vem essa pressão? Estamos enfrentando o desmatamento em meio a uma verdadeira guerra. O crime organizado urbano foi para a Amazônia e se apropriou dos delitos ambientais como forma de lavagem de dinheiro. Os fiscais têm sido recebidos à bala durante as operações. Isso para nós é, obviamente, de grande complexidade. O Ibama acaba tendo que trabalhar sempre em conjunto com a PF, a Polícia Rodoviária Federal ou a Força Nacional. Isso não acontecia. Temos sido ameaçados de maneira muito pesada ao atuar no combate ao desmatamento, ao garimpo ilegal e à pesca predatória. Estamos tendo de reforçar muito o treinamento, por exemplo, na utilização de armamento, algo que nunca foi a prioridade de nossas equipes.
O senhor tem sido ameaçado? Tenho recebido um número muito grande de ameaças, via redes sociais.
O crime organizado tem se multiplicado na Amazônia, com a ampliação do leque de ilegalidades e da conexão entre grupos criminosos. Quais são as dificuldades para reverter esse quadro? O crime ambiental não era algo organizado e passou a ser. O dinheiro do tráfico de drogas acaba sendo lavado no garimpo, na pesca ilegal. As pessoas entenderam que a atividade econômica em áreas florestais permite o enriquecimento rápido e a lavagem de dinheiro como em nenhum outro lugar. Estamos enfrentando isso com o apoio de várias instituições federais, inclusive das autoridades de segurança dos estados. O desmonte pelo qual o Ibama passou no governo anterior também acabou estimulando muito esse tipo de crime. Terras indígenas foram ocupadas como nunca antes. A retomada da capacidade de poder entrar nessas áreas e tirar ocupantes ilegais não é um trabalho fácil.
Muitas lideranças políticas da Amazônia, incluindo prefeitos, parlamentares e governadores, têm uma postura de tolerância com atividades que degradam o meio ambiente. Por que isso ocorre? Existe uma imagem de que o desmatamento equivale a desenvolvimento. As pessoas entendem que, quando o Ibama está combatendo o desmatamento ilegal, está atrapalhando o desenvolvimento da região. E os dados têm mostrado o contrário, uma pobreza muito grande, exploração da mão de obra e o desrespeito a uma série de direitos humanos justamente nesses locais. Talvez isso explique um pouco a resistência ao nosso trabalho. O Ministério do Meio Ambiente está colocando para funcionar uma série de estratégias econômicas para que a floresta em pé tenha um valor maior do que no chão. Enquanto isso, as ações de controle são relevantes.
“A agricultura é importantíssima para nossa economia, e parte significativa dela respeita as normas ambientais. O índice de não conformidade é de 2% dos proprietários”
O agronegócio dificulta o avanço das pautas ambientais? A agricultura brasileira é importantíssima para nossa economia, e uma parte significativa dela respeita as normas. O índice de não conformidade com a legislação ambiental é de 2% dos proprietários rurais, mas existem resistências de alguns setores. Eu sou muito contrário a qualquer tipo de generalização. Acho que a gente não pode colocar a responsabilidade no agronegócio como um todo. Temos um desafio de que as atividades econômicas sejam conciliatórias. Fizemos o maior Plano Safra da história e o maior projeto de agricultura de baixo carbono do mundo. Ou seja, não são coisas excludentes.
O atual governo começou com a pretensão de liderar as discussões sobre a questão ambiental no mundo, em especial o debate relacionado às mudanças climáticas. Acha que tem sido bem-sucedido? Nenhum país reduziu mais suas emissões do que o Brasil. O país foi à COP28 com ao menos 200 milhões de toneladas de gás carbônico a menos em suas emissões por causa da redução do desmatamento. Isso tem uma importância enorme para as mudanças climáticas, mas também facilita muito as negociações comerciais lá fora. Não tenho dúvida de que o país está exercitando essa liderança, reconhecida no mundo todo.
As últimas emergências climáticas tendem a acelerar esse tipo de preocupação na agenda pública? Tenho certeza disso. A série histórica mostra que, de maneira sucessiva, os anos têm se tornado cada vez mais quentes. O Acordo de Paris trabalhava com uma lógica de conter o aquecimento do planeta até o fim deste século para que não ultrapassasse o aumento de 1,5 grau em temperatura média. Em 2023 tivemos uma temperatura média superior em 2 graus no planeta. Isso nunca tinha acontecido na história e é muito grave. Daqui para a frente, nós passaremos a ter grandes perdas de diversidade, secas cada vez mais intensas, isso pode prejudicar a produção agrícola do Brasil. Em outras regiões nós teremos chuvas intensas. Esse desequilíbrio é motivo de preocupação mundial, e eu não tenho dúvida de que será a grande prioridade do mundo nos próximos anos.
Mas o Brasil está preparado? Acho que ninguém está. A gente vai precisar adaptar todas as cidades brasileiras, mudar a cultura que temos hoje. Tem um esforço acontecendo no mundo inteiro, inclusive no Brasil, de adaptação e de transição energética. Mas eu entendo que nenhum país do mundo pode dizer que está preparado.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876