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Nísia Trindade: “Encontramos um cenário crítico no Ministério da Saúde”

A primeira mulher a assumir a pasta exalta a resiliência do sistema público brasileiro e enfatiza a retomada de programas dilapidados pelo governo anterior

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 10h40 - Publicado em 12 Maio 2023, 06h00
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  • Pela primeira vez em setenta anos de existência, o Ministério da Saúde é dirigido por uma mulher. Meses antes de assumir a pasta, a então presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade, já tinha o nome cotado para a posição. Sua missão: reorganizar o Sistema Único de Saúde (SUS) e dar um olhar mais empático e científico para as demandas da população depois da crise pandêmica e do descalabro do governo Bolsonaro, marcado por trocas de ministros e ataques infundados às vacinas. Após assumir o cargo, a socióloga e professora de 65 anos conta ter deparado com um cenário caótico: programas essenciais descontinuados, medicamentos vencidos e uma tragédia sanitária no território ianomâmi. Em entrevista a VEJA, a ministra comenta fraudes atribuídas à gestão do ex-presidente e a retomada do protagonismo do Brasil nos índices de coberturas vacinais. Ela afirma já ter iniciado um diálogo com as entidades médicas para buscar convergências, sedimentar práticas baseadas em evidência científica e ampliar o Mais Médicos num país que ainda sofre com a desigualdade no acesso à saúde.

    O ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo acusado de inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19. O que dizer? Apurar esses fatos e esclarecer o ocorrido é dever do Estado e um ato de respeito com os brasileiros. Nem todas as vítimas da pandemia tiveram acesso à vacina em tempo e carregamos o trágico marco de 700 000 vidas perdidas nesse período tão doloroso.

    Se for comprovada a denúncia, que lições tirar do episódio? As informações contidas no certificado de vacinação são essenciais para a definição de políticas públicas e nos mostram qual caminho devemos seguir para proteger a população. Além da operacionalização da vacinação, a vigilância epidemiológica de um país depende da responsabilidade de todos para registrar e tratar os dados de imunização.

    Afinal, qual situação a senhora encontrou ao assumir o Ministério da Saúde? Era um cenário crítico, com muitos programas descontinuados, represamento de três anos de demandas, como o credenciamento de agentes comunitários, e a total descaracterização de diversas ações. Encontramos um Programa Nacional de Imunizações (PNI) sem comitê e sem força de poder para dar suporte durante a pandemia. Além de estoques de vacinas, medicamentos e outros insumos vencidos. Era clara a necessidade de uma reestruturação.

    Quais foram os desafios dos primeiros passos nessa reorganização? Talvez o aspecto mais desafiador seja recuperar o papel de coordenador do Ministério da Saúde. Os municípios e estados tomaram a frente nas ações nesses últimos quatro anos, e isso foi um mérito. Mas, para que tenhamos equidade e um sistema universal capaz de atender 214 milhões de habitantes, é preciso restabelecer nosso papel de coordenação nacional. Uma grande fortaleza do SUS é ser uma política de Estado, que foi muito afetada no governo anterior, mas tem uma grande resiliência. Nesse sentido, duas medidas foram tomadas: o lançamento do Movimento Nacional pela Vacinação e um programa de redução de filas para cirurgias.

    “Tenho dito que médicos brasileiros serão prioridade (no programa Mais Médicos) e ponderado que vamos trabalhar para aperfeiçoar a revalidação dos diplomas de estrangeiros”

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    A entrada da senhora na pasta coincidiu com a grave crise de saúde no território ianomâmi. Como estão lidando com ela? O povo ianomâmi se alimenta por meio de pesca e coleta de frutos e raízes, e o garimpo ilegal desestruturou esse ambiente e sua sociedade. A situação se agravou por causa de uma política de descaso, com o Estado abrindo mão do poder de regulação econômica e social sobre atividades de caráter predatório. Encontramos crianças e adultos desassistidos com doenças respiratórias, denúncias de roubo de medicamentos, enfim, uma situação de grande dramaticidade. Mas nada se comparou a ter ido lá. Com um quadro tão grave, determinamos o estado de emergência sanitária. E ainda é uma emergência. Mas conseguimos inaugurar o Centro de Referência em Saúde Indígena em Surucucu, Roraima, e estamos realizando ações para o fornecimento de água potável à comunidade.

    O programa Mais Médicos foi amplamente criticado pela classe médica e escanteado no governo anterior. Ele renascerá? Estamos trabalhando pela retomada do Mais Médicos, desenvolvendo meios de fixar, por pelo menos quatro anos, profissionais em determinadas localidades para mantermos a continuidade na assistência. Os apontamentos da classe médica são sempre direcionados à revalidação dos diplomas de profissionais estrangeiros, o Revalida. Mas tenho dito que os médicos brasileiros serão prioridade no programa e ponderado que vamos trabalhar com o Ministério da Educação para aperfeiçoar o exame do Revalida.

    Mas como garantir que os médicos trabalhem nas áreas mais remotas, de evidente necessidade? Estamos no caminho de fortalecer o programa e ampliar os incentivos aos médicos, inclusive na dimensão educacional, por meio da oferta de mestrados. Publicamos um edital com 6 200 vagas para adesão e chamamento dos municípios e abrimos 1 000 vagas só para a Amazônia Legal, considerando o vazio que essa região enfrenta.

    Ao longo da pandemia, houve médicos prescrevendo remédios sem eficácia contra a Covid-19 com o aval do Conselho Federal de Medicina (CFM). A senhora já conversou com a entidade? Nosso governo se pauta por ciência, inclusão e democracia. Temos feito um esforço para dialogar com a categoria médica. Infelizmente, ainda vemos manifestações isoladas de médicos propagando fake news, mas estamos em contato com o CFM e fazendo reuniões para buscar convergências a favor da população.

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    Durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) houve a promoção de um tratamento baseado em pseudociência, a fosfoetanolamina, batizada de “pílula do câncer”. Como pretende lidar com casos do gênero, caso surjam? Essa questão acompanha a humanidade. Na gripe espanhola (1918-1920), não tinha vacina e recomendavam de tudo. Até a cloroquina foi preconizada. É por isso que estamos reestruturando nossas equipes para a difusão da comunicação científica e, assim, alertar as pessoas para que não confiem em qualquer informação nem em soluções mágicas para problemas de saúde.

    Um fenômeno debatido nos últimos anos é a queda nas coberturas vacinais. O que planejam para revertê-la? Temos de começar buscando os pais para que todas as crianças sejam vacinadas. O país já teve cobertura para sarampo e pólio na faixa dos 90%, mas hoje não chega a 70%. É preciso entender que vacina e água potável são conquistas da civilização: aumentam a expectativa de vida e salvam vidas.

    A secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente, Ethel Maciel, citou a criação de um plano para a doação de insumos próximos ao vencimento, inclusive para outros países. É coerente a distribuição para o exterior com tantos problemas internos? O Brasil tem longa tradição de ajuda humanitária junto à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), e doações já têm sido feitas para nações com o mesmo nível de desenvolvimento da nossa. O plano contempla insumos diversos, de luvas de proteção cirúrgica a anticoncepcionais. Há até mesmo vacinas contra Covid-19, estocadas devido à campanha do governo anterior contra os imunizantes. Mas, para evitar ao máximo o estoque e o vencimento de medicamentos e insumos, vamos fazer primeiro a distribuição deles pelo país.

    Mas há algum projeto para que o país se torne mais autossuficiente em insumos e medicamentos, problema escancarado pela pandemia? Esse já era um tema no Brasil na década de 1970, quando se propôs um programa nacional de autossuficiência em imunobiológicos (vacinas e medicamentos em geral injetáveis). Acreditamos que a área da saúde é uma política social, mas também um fator para o desenvolvimento econômico e sustentável do país. Por essa razão, queremos que, em dez anos, 70% da produção nacional desses insumos seja feita em parceria com a iniciativa privada. Isso reduzirá a vulnerabilidade do Brasil.

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    “O país já teve cobertura para sarampo e poliomielite na faixa dos 90%, mas hoje não chega a 70%. Vacina e água potável são conquistas da civilização”

    Há anos a Tabela SUS, que remunera profissionais e instituições, é tida como defasada. Como pretendem desatar esse nó? É um fato que precisamos de uma revisão. E já começamos a propor mudanças na tabela com as cirurgias eletivas, tendo agora a possibilidade de pagar duas vezes mais por elas. Estamos trabalhando numa nova política envolvendo procedimentos de alta e média complexidade. Mas é necessário que tenhamos um financiamento robusto para o SUS, à altura do sistema, e associado à ideia de integrar a atenção primária à especializada.

    Acredita que é possível ampliar ou acelerar a incorporação de novas tecnologias e tratamentos pelo SUS? Essa frente é importantíssima no ministério. Temos enfatizado as doenças crônicas, como o câncer, e as doenças raras, cujos tratamentos têm muito impacto orçamentário. No entanto, é preciso incorporar medicamentos de acordo com a segurança sanitária e a sustentabilidade do sistema.

    A senhora é a primeira mulher a assumir o Ministério da Saúde. Quais devem ser as bandeiras da sua gestão para a população feminina? A nossa visão é a de um cuidado integral com a saúde física, psíquica, emocional e, ao mesmo tempo, um olhar não apenas pelo ângulo da saúde maternoinfantil, porque muitas mulheres não são mães. Esse cuidado é importante para que elas tenham autonomia sobre o seu corpo e sejam respeitadas pelas políticas públicas. Com essa visão, lançamos a portaria da dignidade menstrual para que as mulheres em situação vulnerável tenham apoio do Estado no acesso a absorventes, por exemplo.

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    Tivemos episódios de violência nas escolas, algo que se conecta à falta de ações para a saúde mental dos mais jovens. Qual será a contribuição do ministério nessa força-tarefa? Criou-se no Brasil um ambiente que estimulou o discurso de ódio, e isso precisa ser superado para resolvermos a questão da violência nas escolas. Estamos reestruturando o departamento de saúde mental, que sofreu muitos reveses no governo anterior, para fortalecer a rede de atenção psicossocial em todo o Brasil. A outra linha de atuação é o fortalecimento do programa Saúde na Escola, criado em 2007. Ele contemplava de alimentação a prevenção da violência, só que foi descaracterizado nos últimos anos. Precisamos fazer um trabalho preventivo nesse sentido, valorizando uma cultura de paz.

    Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841

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