No comando da filial brasileira do grupo L’Oréal, a maior fabricante de cosméticos do mundo, Marcelo Zimet comemora conquistas e enfrenta desafios. Sob sua gestão, iniciada em abril de 2021, a primeira de um brasileiro no cargo nos 63 anos da empresa no país, cravou-se um crescimento de 18% na receita, o triplo da média do mercado. A empresa não revela dados detalhados, mas estima-se que a filial responda por 70% das vendas da América Latina, que registrou 1,7 bilhão de euros em 2021. Ainda assim, trata-se de um mercado extremamente competitivo, com duas concorrentes nacionais agressivas, Natura e Boticário. Além das pesadas disputas comerciais, a indústria da beleza também navega em um cenário complexo que envolve questões de afirmação racial, de gênero e de ativismo ambiental. De seu escritório na região portuária do Rio de Janeiro, Zimet, de 47 anos, falou a VEJA sobre os desafios do gigante francês para o país.
O Brasil possui uma população muito diversa do ponto de vista racial e vive um momento marcado por profunda revisão de padrões de beleza. Como é atender os interesses desse perfil de consumidor? Somos um laboratório a céu aberto. Do ponto de vista da indústria de cosméticos, temos aqui, por exemplo, oito tipos de cabelo e 55 tons de pele, entre os sessenta catalogados por nossos cientistas em todo o mundo. Por isso falam que, se uma fórmula funciona para o Brasil, provavelmente ela vai ser muito bem-sucedida globalmente. Atualmente, conduzimos um trabalho profundo para conhecer nossos consumidores brasileiros e desenvolver produtos cada vez mais específicos, respeitando a identidade de cada uma de nossas marcas.
Como é o padrão de consumo local em comparação aos outros países? O Brasil é o quarto maior mercado de produtos de beleza no mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Japão. As mulheres brasileiras usam, em média, cinco produtos capilares diariamente, enquanto as francesas, em comparação, usam três. Ao longo dos últimos anos, temos lançado produtos específicos para essas mulheres. Em compensação, menos da metade da população brasileira usa produtos para cuidar da pele, inclusive os mais básicos. Por isso temos procurado conhecer melhor as necessidades desse tipo de consumidora.
As indústrias de cosméticos, no passado, foram responsáveis justamente por reforçar estereótipos de padrões de beleza que hoje são questionados. Como foi feita a transição para um modelo de negócios mais inclusivo? Não existe mais modelo global de beleza. Eu morei muito tempo no exterior e quando retornei ao Brasil tive uma surpresa muito positiva. As mulheres se libertaram do cabelo liso e loiro e assumiram as suas identidades. Os últimos cinco anos mostram mudanças significativas no perfil das brasileiras: cabelos cacheados ganharam protagonismo. Evoluímos muito nos últimos anos com a oferta de maquiagens e de produtos para pele e cabelo voltados a uma gama mais ampla de consumidores, e essa transformação vai se intensificar ainda mais nos próximos anos.
“Não existe mais um padrão global de beleza. As brasileiras se libertaram do cabelo liso e loiro e assumiram suas identidades. O cabelo cacheado ganhou protagonismo”
Muitas empresas se vendem como diversas e inclusivas, mas na prática é muito difícil verificar essa mudança. Como garantir que essas ações não fiquem apenas no discurso? A diversidade de gênero e a diversidade racial são cada vez mais relevantes nas organizações. Nós percebemos que trabalhar com diversidade traz um valor enorme e reflete em melhores resultados. Então, o primeiro ponto é reconhecer que diversidade não é só uma questão de levantar uma causa, mas uma forma mais moderna e dinâmica de trabalho. Entre nossos 3 000 trabalhadores, 13% são LGBTQIA+ autodeclarados, 33,4% são negros — só em 2021 49% de nossas contratações foram de profissionais negros. E nossa meta de representatividade racial é chegar a 30% de líderes negros em 2025.
A L’Oréal teve há alguns anos uma executiva transgênero na direção de uma de suas marcas na França. A empresa possui funcionários trans no Brasil? Sim. Trabalhamos em parceria com a TransEmpregos e o CIEE para aumentar a representatividade de pessoas trans no nosso quadro de colaboradores. Contamos com redes de afinidade dentro da empresa e entre elas está a Prisma, com 75 pessoas que buscam fomentar a agenda LGBTQIA+ na companhia, acolhendo membros da comunidade. Nos nossos processos seletivos, temos como política não fazer nenhuma distinção de identidade de gênero ou orientação sexual. Além disso, também investimos ao longo de todo ano em ações educacionais e de combate a LGBTfobia. Entendemos que é nosso papel proporcionar um ambiente de trabalho e campanhas publicitárias inclusivos — e isso significa garantir representatividade e respeito a todas as identidades de gênero e orientações sexuais.
E quanto aos produtos, são específicos para esse público também? Nenhum produto nosso é para um gênero específico. A beleza não tem gênero. Obviamente que algumas campanhas de comunicação direcionam o produto para um público-alvo, mas no universo digital a linguagem hoje pode ser de todos. A comunicação vem perdendo esse caráter de diferenciação e a elaboração do produto já não tem mais esse foco.
Como o senhor avalia a disputa pelo mercado de beleza no Brasil? Aqui temos duas grandes empresas de beleza e cosméticos nacionais, uma peculiaridade que não acontece em outros países em que o grupo opera. Natura e Boticário são muito fortes, e isso nos tira de qualquer tipo de zona de conforto.
A pandemia e o isolamento afetaram os hábitos de consumo dos produtos de beleza? Com o isolamento, as pessoas tiveram mais tempo para se cuidar, então observamos aumento do consumo de produtos de beleza nesse período. Temos quatro divisões de negócio com diferentes focos e faixas de preço e, mesmo com limitações socioeconômicas, o consumo continuou, ainda que com uma pequena migração de uma categoria para outra. Algumas categorias de cuidados para pele e cabelos tiveram um aumento enorme, mas a categoria de cosméticos como maquiagens, por exemplo, sofreu uma redução significativa.
Como vocês lidam com a questão dos testes de produtos em animais, um ponto crítico da indústria da beleza? A empresa não faz testes em animais desde 1989. Hoje temos várias tecnologias para a avaliação dos produtos, como a primeira pele artificial humana criada em laboratório. Dispomos ainda de modelos digitais que podem ser usados para testar novas fórmulas. Hoje, já não temos mais qualquer necessidade de testes em animais.
Mas em alguns países ainda são realizados, não? Sim, existem governos que ainda exigem isso. Não é uma questão da indústria, é uma questão de governo, como por exemplo na China, em que os testes em animais ainda são previstos por lei. Alguns governos ainda fazem, mas eles não são realizados pela indústria.
E os testes em peles artificiais têm se mostrado seguros? Superseguros. A pele artificial tem o mesmo aspecto de pele humana. Pode ser até usada em casos de queimaduras. Nesses tecidos desenvolvidos pela bioengenharia são simuladas possíveis reações cutâneas em contato com diferentes produtos tópicos. Esse produto é utilizado inclusive no Brasil no nosso Centro de Pesquisa e Inovação, localizado no Rio de Janeiro.
Sabe-se que a produção de cosméticos convencionais utiliza cerca de mais de 10 000 substâncias químicas prejudiciais ao meio ambiente. O que a empresa tem feito para ajudar a mitigar esse impacto? Estamos acelerando o nosso sistema de inovação sustentável por uma beleza mais natural. Até 2030, 95% dos ingredientes usados em nossas fórmulas serão derivados de fontes vegetais renováveis, de minerais abundantes ou de processos circulares, e 100% das fórmulas respeitarão o meio ambiente aquático. Hoje, 92% dos produtos lançados ou renovados pela empresa no Brasil já tiveram o seu perfil ambiental melhorado. Além disso, alcançamos a média de 91% de biodegradabilidade em xampus e condicionadores.
“Hoje já não temos necessidade de testes em animais. Criamos, por exemplo, a primeira pele artificial e modelos digitais que podem ser usados para analisar os produtos”
Alguns países já proíbem o uso de plásticos e algumas empresas já decidiram eliminar o material. Essa discussão tem avançado na L’Oréal? É uma prioridade nossa migrar para embalagens recicladas e recicláveis. A meta é que até 2030, 100% dos plásticos usados sejam de fontes recicladas. Somado esse compromisso, 100% dos ingredientes de origem biológica, incluídos nas fórmulas e materiais de embalagem, serão rastreáveis e terão uma origem sustentável. Nenhum desses ingredientes estará ligado ao desmatamento florestal.
Como tem sido o efeito da inflação sobre a categoria de higiene e beleza? A inflação tem um impacto indireto nos custos. O que temos feito é tentar não repassá-los aos consumidores. Existem vários projetos de eficiência interna para melhorar os custos operacionais, mas chega um momento em que a companhia não consegue segurar. E a inflação afeta o consumo também. Começamos a observar isso em número de unidades, o volume tem caído nos últimos meses, mesmo em situações em que não houve repasses para os preços.
O ambiente econômico do país é preocupante? Estamos mais preocupados em conquistar consumidores e ganhar participação de mercado do que justificar a falta de crescimento por aspectos externos ou macroeconômicos. Mas, claro, estamos antenados com os impactos sociais sobre os consumidores.
E o câmbio, preocupa? A gente importa poucos produtos de fora. Praticamente 90% do volume vendido é produzido em nossa fábrica no Brasil e 80% dos fornecedores são locais. Algumas matérias-primas são commodities, então existem impactos de câmbio e inflação, mas não somos uma grande importadora.
Que tipo de agenda econômica você espera para os próximos anos? É preciso ter visão clara onde o país quer chegar e como chegar. Também é importante uma agenda de simplificação, com reformas que são fundamentais, como a tributária. E tem ainda a parte social, que hoje possui índices preocupantes de desemprego. É preciso foco nas pessoas.
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789