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Mauricio de Sousa, sobre filho gay: ‘Para mim, isso sempre foi natural’

O cartunista fala sobre a derrota na ABL e diz que trabalhará com o MEC para levar os quadrinhos às escolas: 'Gibi é educação'

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 10h22 - Publicado em 30 jun 2023, 06h00

Aos 87 anos, Mauricio de Sousa não dá sinal de que vá desacelerar. “Vou para a frente, sempre”, diz. De fato, o criador da Turma da Mônica não para: tem projetos para TV, cinema e streaming — e neste sábado, 1º, estreia num teatro paulistano um circo musical em torno de sua personagem famosa, que acaba de fazer 60 anos. Embora tenha perdido a disputa por uma vaga na Academia Brasileira de Letras, acredita que sua campanha mobilizou os fãs e levantou o debate sobre se gibi é ou não é literatura. Recentemente, obteve uma vitória nesse campo: o Ministério da Educação usou uma tirinha da Mônica como critério de alfabetização de alunos de 7 anos. Pai de dez rebentos (obviamente, todos criados com ajuda de muitas leituras de quadrinhos), Mauricio postou semanas atrás uma foto com a bandeira do arco-íris ao lado do filho Mauro, ativista LGBTQIA+. “Orgulho, respeito e igualdade”, escreveu na legenda. No fim do ano, sua cinebiografia chegará às telas, com Mauro no papel do pai. O cartunista recebeu VEJA em seus estúdios, em São Paulo, para falar desses e de outros temas.

O que achou de o Ministério da Educação elencar entre os critérios para considerar alunos de 7 anos alfabetizados a leitura de histórias em quadrinhos, usando uma tira da Mônica e do Cebolinha como exemplo? É uma medalha no peito. Acredito que a gente consiga alfabetizar por meio das histórias em quadrinhos. Milhões de brasileiros aprenderam a ler com os meus personagens. Temos de entrar com força nas escolas usando os quadrinhos, pois quero que as crianças brinquem de ler. Eu me alfabetizei com gibis. Minha mãe lia e explicava as letrinhas para mim. Em quatro meses, estava lendo sozinho. Ela deu graças a Deus porque, finalmente, pôde voltar a ouvir a radionovela que tanto amava. Como toda criança, eu pedia para ler a mesma história várias vezes. Tinha uns 5 anos e considero minha mãe a primeira professora.

Há um interesse do senhor em trabalhar mais próximo do MEC? É uma velha ideia minha de participar do ensino oficialmente, junto com o pessoal do MEC. Eu já tentei mais de uma vez, com diversos ministros da Educação, mas não deu certo. Agora que há esse entendimento de que os quadrinhos podem auxiliar na alfabetização, é lógico que continuarei tentando. Até porque a conclusão da pesquisa (Alfabetiza Brasil, feita pelo Inep) é assustadora. Ela mostrou que mais da metade dos alunos do 2º ano do ensino fundamental não estão alfabetizados. Quero entrar de sola nesse negócio.

Em abril, o senhor concorreu a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e chegou a ser apontado como favorito. No entanto, recebeu apenas dois votos. O que houve? Esse caso dos dois votos na ABL é meio esquisito. O pessoal estava bem, vamos dizer, combinado. Fiquei tão satisfeito com a resposta do público me defendendo que essa coisa dos dois votos passou batido. É o sistema. As academias são espaços em que grupos de pessoas conhecidas trabalham e planejam as coisas juntos. Quem não entra tem de esperar a próxima vaga. Mas, para mim, torcer pela próxima vaga quer dizer esperar que alguém morra. É muito chato na cabeça da gente querer entrar só depois que alguém morre. É um negócio meio Penadinho. Não gosto disso.

“Esse caso dos dois votos que tive na ABL é esquisito. O pessoal já estava bem, vamos dizer, combinado. Fiquei tão satisfeito com o público me defendendo que isso passou batido. É o sistema”

Deixando o efeito Penadinho à parte, o senhor pensa em se candidatar novamente? Não sei se ainda vou concorrer novamente. Não decidi ainda. Quero ampliar um pouquinho mais minha atuação na Academia Paulista de Letras, da qual já faço parte.

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Durante a campanha para a ABL, uma das discussões acaloradas era se gibi é literatura ou não. O que pensa disso? Geralmente, todo quadrinho tem um balão com textos. Se eu somar todos os textos que fiz até hoje, dá um montão de livros. Passei os últimos sessenta anos escrevendo e desenhando. Além disso, eu fui repórter policial no passado. Lá no ginásio, em Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo, eu já lia muito. Um livro por dia, mesmo. Depois, quando cheguei ao ambiente do jornal, aprendi a enxugar o texto. Se eu não tivesse passado por tudo isso, não teria a facilidade que tenho para usar o português nos balõezinhos. Agradeço aos clássicos da literatura e às redações dos jornais por ser quem eu sou.

O senhor levou para o lado pessoal os ataques de um dos candidatos à ABL ironizando os quadrinhos e o desmerecendo como autor? Não levei. Não estava nesse clima, não. Como disse, já faço parte da Academia Paulista, com belos amigos e grandes escritores. Lá no Rio de Janeiro há muitos autores de que eu gostaria de me aproximar, para aprender mais. Tenho essa ambição para abrir meu leque. Não deu, ainda. Mas não tomei o que foi dito na campanha como uma coisa contra mim.

Chegou a tomar o famoso chá nos salões da Academia? Sim. Fui muito bem acolhido. O presidente da ABL, Merval Pereira, me recebeu em uma tarde. Fui lá na hora do chá e havia o pessoal com mais idade. Para minha surpresa, foram justamente os mais velhos que comentaram sobre o que eu estava fazendo e sobre meus personagens. Achei muito bom ver os veteranos acompanhando meu trabalho. Fiz novas amizades.

Aos 87 anos, a vida do senhor vai virar filme com coprodução da Disney. Alguma vez já imaginou que algo assim poderia acontecer? Fico encabulado quando falam minha idade. Jamais poderia imaginar isso. E, se imaginasse, acharia que era algo impossível. Também não poderia jamais imaginar que teria esse meu estúdio bonito. Era parte do sonho, mas nunca achei que fosse me dar tão bem. E estamos em expansão.

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Seu filho Mauro, de 36 anos, interpretará o senhor na cinebiografia. O que achou da atuação dele? Realmente, ele está igualzinho a mim fisicamente, quando eu tinha a mesma idade. Além disso, ele também é ator, cantor e instrumentista. No cinema, ele arrasa. Ele sou eu.

Mauro é ativista pelos direitos LGBTQIA+ e, nas redes sociais, posta fotos beijando o marido e se afirmando. Como vê essa postura dele? Como pai amantíssimo dos filhos, não só do Mauro, o que fizer eles felizes, eu estou com eles. Amo meus filhos como eles são e, se o Mauro é feliz, eu acho que eu dei certo como pai.

O senhor tem medo que ele sofra algum ataque devido à homofobia? Sempre penso que alguma coisa assim pode acontecer. Logicamente que a gente sugere que eles tomem cuidado. Infelizmente, há coisas ruins por aí acontecendo. Rezo para que nada ocorra com ele — e, principalmente, que ele continue com seu ativismo e seu modo aberto, que está dando tão certo na vida dele. Nunca tive preconceito. Lá em Mogi, quando eu era mais jovem, meus amigos gays eram os mais benquistos da cidade, os mais cultos e divertidos. Para mim, sempre foi uma coisa natural.

Entre os pais das crianças há pessoas de todos os matizes políticos, tanto à esquerda quanto à direita. Qualquer deslize provoca polêmicas e até boicotes. Quais cuidados toma para atuar numa atmosfera tão polarizada? Estou nesse mercado há sessenta anos e sempre evitei qualquer historinha ou tema que mexessem com política ou com o ambiente político. Todo mundo tem suas opiniões pessoais nessa seara. Mas, quando vira uma coisa partidária, eu não gosto. Não é do nosso estilo mexer com isso, especialmente nos personagens infantis. De jeito nenhum.

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Ainda assim, às vésperas da ditadura militar o senhor chegou a ser tachado de comunista e foi demitido de jornais em São Paulo. Como enfrentou aquele período? Comprei uma Kombi e passei a levar pessoalmente meu material para os jornais do interior. Como era jornalista, tinha facilidade em convencer os donos de veículos locais a comprar minhas tirinhas. Criei um sistema de distribuição e, em um ano ou dois, já publicava em 400 jornais do Brasil. Foi nessa época que surgiram os meus personagens sem sapato: Mônica, Cascão e Magali, porque eu não tinha tempo para desenhar o adereço e ganhava alguns minutos fazendo eles descalços.

Vários cartunistas que faziam tiras políticas, como Ziraldo, Henfil e Millôr Fernandes — o pessoal do Pasquim —, foram presos, mas o senhor, por ser autor infantil, escapou. O que pensa disso? Quando a ditadura passou, perguntei a um censor por que não me prenderam. Ele disse que meu material era para um público infantil e que, portanto, eu não tinha influência. Com isso, escapei. Mal sabiam eles.

“Amo meus filhos como são e, se o Mauro é feliz, acho que dei certo como pai. Quando eu era jovem, meus amigos gays eram os mais cultos e divertidos. Para mim, isso sempre foi natural”

Como assim? Eu criava fábulas como maneira de desabafar. Nas tirinhas da Turma da Mata, inventei o Rei Leonino, personagem que ficava desapontado porque não sabia o que iria acontecer nas tirinhas do dia seguinte e resolveu prender o autor (eu) para saber com antecedência. Numa historinha do Astronauta, ele viajava para um planeta onde era proibido cantar, na mesma época em que proibiram Chico Buarque, Caetano e Gil. Anos depois, já na democracia, um grupo de políticos tentou mudar o modo como o Chico Bento falava. Não queriam que ele falasse “caipirês”. Daí um grupo de crianças do Rio fez uma passeata contra a mudança. Vale lembrar que sou caipira do Vale do Paraíba.

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O senhor vende 12 milhões de revistinhas por ano. Recentemente, sua empresa deu uma guinada para o audiovisual com filmes e séries em live action no streaming. Pretende continuar investindo na área? É um caminho sem volta. De algum maneira, eu esqueci do freio de mão. Vou para a frente, sempre. O cinema está dando certo. Temos agora dois filmes em produção e mais alguns programados. Além de tudo, tem o Mônica Toy, um desenho animado curto sem voz para o YouTube. Nós já temos números de bilhões de views com o Mônica Toy. É um desafio crescer.

Leitores que conheceram a Turma da Mônica logo no início hoje já têm mais de 60 anos e são avós. O senhor pensa nesse público ainda? Estava no Japão em uma reunião com diretores de grandes empresas e Shintaro Tsuji, presidente da Sanrio, dona da Hello Kitty, disse que eu estava perdendo dinheiro por não fazer merchandising para o público idoso. Isso me deu um estalo e já estamos planejando produtos para o pessoal de mais idade. É difícil porque eles ficam encabulados. Até o ano que vem, lançarei uma historinha comemorativa dos 60 anos da Mônica com os personagens idosos. Esse será o começo. E não terá os personagens jogando bocha, não. Nada balzaquiano. Será uma turma atuante, como são os idosos hoje. Vamos deixar todo mundo no estica.

Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848

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