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José Sarney: “Golpe nunca mais”

Presidente que conduziu o Brasil na transição à democracia diz que país precisa de uma reforma política para superar, inclusive, o modelo presidencialista

Por Isabella Alonso Panho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 Maio 2025, 17h49 - Publicado em 16 Maio 2025, 06h00

O maior legado da passagem de José Sarney (MDB) pela Presidência (1985 a 1990) foi guiar o país durante a saída da ditadura militar, um dos momentos mais críticos da história brasileira. Alçado ao cargo máximo da República após a morte de Tancredo Neves, o nome que havia sido ungido pelo Colégio Eleitoral, Sarney enfrentou desde o início a resistência de setores das Forças Armadas que não queriam a passagem de bastão do poder para os civis, mas conseguiu conduzir o governo no fio da navalha, em um movimento decisivo para pacificar a nação. Hoje, aos 95 anos, vive em seu estado natal, o Maranhão, mas continua influente nos bastidores de Brasília e acompanha com interesse a movimentação política. Para ele, a agitação promovida em 8 de janeiro de 2023 não foi uma tentativa de golpe e, embora alerte que a democracia sempre inspira cuidados, não acredita que haverá outros distúrbios do tipo. A VEJA o ex-presidente diz ainda que o Brasil precisa de uma ampla reforma política, critica o sistema partidário e as emendas parlamentares e defende que o MDB, partido do qual é presidente de honra, caminhe com Lula em 2026. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

O que o senhor pensa sobre a volta dos militares à política e o fato de parte deles estar no banco dos réus por tentativa de golpe de Estado? Jamais qualquer golpe de Estado ocorrerá neste país, porque já tivemos algumas experiências que foram danosas à nossa tranquilidade democrática. Isso não ocorrerá mais. Os próprios militares chegaram à conclusão de que o melhor regime é o do povo para o povo, e não qualquer aventura autoritária. O presidente Ernesto Geisel (que chefiou a ditadura militar entre 1974 e 1979) deu a diretriz de que devia haver uma transição lenta, gradual e segura. Nós não fizemos a passagem à democracia por meio de uma batalha militar, em que teríamos que decidir pelas armas, mas, sim, por um processo de engenharia política muito bem construído. Os militares hoje têm essa consciência democrática e estão dedicados a seus deveres constitucionais.

A democracia chegou a entrar em risco logo depois do fim da ditadura? Não devemos deixar de dizer que houve ameaça. Após a ditadura Vargas, o deputado Otávio Mangabeira, na Constituinte de 1946, disse que a democracia era planta tenra, com a qual devemos ter cuidado dia e noite. Thomas Jefferson dizia que o preço da liberdade é a eterna vigilância. O Brasil hoje tem instrumentos democráticos consolidados nas instituições que criamos. Na noite da minha posse como vice-presidente, na sucessão de Tancredo, que estava doente, o general Walter Pires, ministro do Exército de João Figueiredo (último presidente da ditadura militar), foi a Leitão de Abreu, chefe da Casa Civil, e disse que iria aos quartéis para que eu não tomasse posse. Figueiredo não me passou a faixa presidencial, mas aquilo foi apenas simbólico.

O ataque aos Três Poderes no 8 de Janeiro foi tentativa de golpe? Não. Houve um excesso de judicialização da política e de politização da Justiça.

O que acha das punições que têm sido arbitradas pelo STF aos envolvidos no episódio? O Supremo deve ter em mente que, enquanto nós tivermos o sistema penitenciário que temos, ele será uma escola de crime em vez de ser um lugar de recuperação, para que os presos possam desfrutar uma vida futura recuperados. Isso tudo não funciona. Enquanto for assim, as penas devem ser punições que não afetem a lotação penitenciária. Nós temos que abandonar os processos políticos e ver as coisas factualmente.

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“Não fizemos a passagem à democracia por meio de uma batalha militar, em que teríamos que decidir pelas armas, mas por um processo de engenharia política bem construído”

Qual deve ser o destino dos acusados de tentativa de golpe de Estado julgados agora no Supremo, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro e generais de quatro estrelas? Não conheço os processos. Não posso julgá-los, não posso ser temerário para fazer uma coisa dessas. Mas, sem dúvida alguma, se tiverem culpados, que eles sejam punidos; se tiverem inocentes, que eles sejam absolvidos.

O senhor concorda com a crítica de que haveria um excesso de ativismo por parte do STF? Quanto ao Supremo e à Justiça, quero usar a palavra do ministro Nelson Jobim, que foi quem detectou, em primeiro lugar, esse processo de judicialização da política. O Judiciário não ficou imune a ele nem à politização da Justiça. Os partidos têm muita culpa nesse processo, porque começaram a fazer decisões que deveriam ser da classe política serem submetidas à Justiça. Os juízes, julgando questões políticas, evidentemente tiveram que adotar posições políticas. Castelo Branco, primeiro presidente do período militar, disse algo que vale até hoje. Ele alertou que o Exército tivesse cuidado com as vivandeiras de quartel. A Justiça e os partidos políticos também devem ter cuidado com as vivandeiras que ficam instigando esses processos que levam a democracia a ser envolvida.

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Qual é a raiz desse problema? Não temos tradição de partido nacional. Isso é recente, data de 1945, da Lei Agamenon Magalhães. Até então, eram só partidos regionais e estaduais. Argentina e Uruguai possuem partidos centenários. Nós temos siglas com apenas cinco ou dez anos. Há uma infinidade de agremiações que só fazem atrapalhar o processo. A democracia precisa de legendas fortes para termos uma democracia forte. A falta disso leva o sistema a essa grande confusão. Os partidos se formam e vão se juntando de acordo com interesses eleitorais, e não por interesses mais altos.

Quais seriam os principais eixos de uma reforma política? Acabar com o voto proporcional e adotar o sufrágio distrital misto, mais ou menos como os modelos da Alemanha e da França. E passarmos para um parlamentarismo moderado, do tipo francês (no qual o Parlamento escolhe o primeiro-ministro). Sou muito convicto de que esse tipo de presidencialismo que está sendo seguido por aqui, de composição, de arregimentação, é um presidencialismo que não funciona, como não tem funcionado, e não serve para fortificar as instituições.

As emendas parlamentares nasceram na Constituição de 1988 e hoje são um motivo de crise entre os poderes. O senhor acha que esse instituto foi deturpado? Esse caso é profundamente lamentável. A maior tarefa do Parlamento, para a qual ele foi instituído na Inglaterra no século XI, é justamente a votação do Orçamento. As emendas são feitas para melhorar o Orçamento, com a visão que os deputados têm de grandes projetos, dos projetos que estão demandando recursos, dos que têm recursos demais. Mas elas foram transformadas em meio para beneficiar a reeleição, o que é terrível. Não é nem para ajudar parte dos estados, mas a reeleição de cada um, dando margem a acusações de natureza muito séria. Acredito que o Congresso está atento a isso. O presidente da Câmara, Hugo Motta, é um homem muito atualizado, e ao mesmo tempo é dessa nova geração de bons políticos que estão surgindo no país. O mais certo seria que o próprio Parlamento tomasse providências. Entregar isso ao Judiciário é uma judicialização da política mais grave ainda.

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O ex-presidente Michel Temer, também do MDB, estaria ajudando na construção de uma candidatura de direita, que poderia ser mais moderada, para 2026. O senhor acha que isso pode ser uma boa saída? Se ele estiver articulando um candidato, teremos que ver dentro do partido como vamos nos posicionar. Acho que o presidente Lula deve ter o nosso apoio, porque ele tem feito bons governos e, ao mesmo tempo, é um homem comprometido com o processo democrático. Com ele, nós não teremos, em nenhum momento, tentativas que possam abalar a democracia.

O senhor apoia então que Lula tente um quarto mandato presidencial? Penso que o MDB deve apoiá-lo se ele for candidato. Nós já o apoiamos, temos uma relação boa com Lula. Sou presidente de honra do MDB, partido com a maior tradição de militância no Brasil. Aliás, o único que restou da sucessão histórica dos nossos partidos, de modo que até hoje resiste a essas modificações todas. As siglas tradicionais foram todas tragadas. O MDB mantém-se firme nessa direção. O presidente Temer é uma reserva do nosso partido. Comigo, ele não falou ainda a esse respeito e acredito que, em algum momento, ele falará.

Lula esteve na Rússia e na China nos últimos dias e defendeu que o Brasil amplie relações com esses dois países. O que acha da política internacional do atual governo? Eu também visitei a Rússia. Fui o primeiro presidente do mundo a visitá-la quando ela ainda estava saindo da União Soviética. Estive com Mikhail Gorbachev, de quem me tornei uma pessoa próxima. Ao mesmo tempo, estive na China. Lula está seguindo aquilo que se chama de política independente internacional, que o Brasil tem que ter.

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“Devemos ter boa relação com os EUA e não aceitar as provocações de Trump. Ninguém sabe o que ele pensa. Meu avô dizia: ‘Nunca corra atrás de um louco. Você não sabe para onde ele vai’ ”

Qual deve ser a relação do Brasil com o governo Trump? Como se diz na nossa terra, não devemos cair em casca de banana. Devemos preservar a nossa relação com os Estados Unidos livre de quaisquer acidentes que sejam resultados do relacionamento entre pessoas. É um país que merece grande respeito, porque sempre exerceu sua presença no mundo por meio dos princípios da democracia, nunca por modos autoritários. Não será Trump quem vai destruir essa imagem. Mas temos de preservar a independência. Se o governo americano impuser taxas excessivas, é preciso repeli-las. Devemos ter boa relação com os Estados Unidos, mas sermos um país maduro, com independência e que pode exercer sua soberania tomando as decisões que precisa tomar. E não aceitar as provocações de Trump. Ninguém sabe o que ele pensa. Meu avô dizia: “Nunca corra atrás de um louco. Você não sabe para onde ele vai”.

O senhor acha que essa onda de direitas radicais, da qual Trump é um exemplo, ainda vai se sustentar por muito tempo? É uma fase que vai passar, porque o mundo vive em condições cíclicas. A tendência da direita extremamente radicalizada é morrer e nós buscarmos uma área de equilíbrio. Por isso a necessidade de diálogo, de convencimento, das fórmulas de paz e, sobretudo, do entendimento entre as nações. Jamais a violência.

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O senhor foi senador pelo Amapá. Uma das polêmicas na região é a explo­ra­ção de petróleo na foz do Amazonas. Qual é sua posição? Não explorar petróleo ali é uma forma de radicalismo na área ambiental. Há técnicas por meio das quais se pode evitar qualquer problema. Deve-se exigir que se faça o que deve ser feito para que nenhum dano ocorra. Mas não podemos abdicar de explorar petróleo em uma área daquela, até porque nossas reservas têm prazo para acabar.

Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944

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