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“Fui ao fundo do poço”, diz ex-tenista alemão Boris Becker

Um dos maiores campeões da história do esporte conta como enfrentou uma debacle terrível que o levou à prisão — e diz como pretende juntar os cacos

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 10h59 - Publicado em 14 abr 2023, 06h00

Em 1985, o tenista alemão Boris Becker saltou da obscuridade para a fama com um slice certeiro: aos 17 anos, tornou-se o mais jovem campeão de Wimbledon. Os anos seguintes lhe reservariam glórias ainda maiores. Becker acumulou seis vitórias no Grand Slam e o ouro na Olimpíada de Barcelona, em 1992, inscrevendo seu nome entre os maiores na história do tênis. Ao encerrar sua carreira, em 1999, porém, o atleta entrou numa rota de queda tão espetacular quanto sua ascensão. O ápice dos tormentos se deu recentemente: Becker amargou oito meses de prisão, após ser condenado por ocultar o equivalente a 15 milhões de reais num processo de falência. Ao sair da cadeia, em dezembro, foi deportado da Inglaterra para a Alemanha de origem. Aos 55, a ex-estrela revive os dias dourados e expõe sem filtros seus problemas atuais na série O Mundo x Boris Becker, recém-lançada pela Apple TV+ e com direção do oscarizado documentarista americano Alex Gibney. Na entrevista exclusiva a VEJA, ele conta o que passou na prisão, analisa seus erros e acertos — além de explicar por que o tênis profissional é um meio tão estressante.

Por que o senhor resolveu falar neste momento com tanta franqueza sobre as dificuldades de sua vida presente na nova série documental da Apple TV+? Fiquei emocionado quando um diretor premiado como Alex Gibney e o produtor John Battsek vieram até mim e me perguntaram se eu queria fazer um filme sobre minha vida. Fico feliz em constatar que minha história esportiva ainda seja importante nos dias de hoje. Mas estou na linha de frente da exposição pública na mídia há 37 anos, desde 1985, e de lá para cá a internet e os telefones celulares ampliaram demais o que se diz sobre minha vida. Naturalmente, há muitas fake news e narrativas erradas na forma como sou retratado. Senti que era importante esclarecer as coisas para dar alento aos meus fãs e às pessoas próximas de mim. Falar sobre as coisas boas e as coisas ruins que eu possa ter feito, mas mantendo uma visão honesta. Estou orgulhoso do resultado.

Como é possível um dos maiores campeões da história do tênis acabar indo à falência e ser condenado à prisão? Olha, isso não aconteceu da noite para o dia. Foi um processo lento. Como um esportista, você ganha muito dinheiro. Mas, quando nos aposentamos do esporte, apenas alguns poucos continuam a manter seus altos ganhos. A maioria de nós está fadada a ter uma renda muito menor do que tinha, como foi meu caso. Só que sua mentalidade e seu estilo de vida ainda tendem a se manter no mesmo ritmo da época áurea. Então, você continua gastando e pensando grande, mas não ganha dinheiro suficiente para dar conta do recado.

“Eu me tornei uma pessoa mais experiente e humilde após a prisão. Estou mais compreensivo e cuidadoso. Espero ser um pouco mais sábio para não cometer o mesmo erro duas vezes”

O senhor deu a última entrevista para o documentário dois dias antes da definição da sua sentença. Como reagiu ao saber que passaria vários meses na prisão? Enquanto eu ainda ansiava que a pena fosse suspensa, foi muito aflitivo. Mas, quando falei para o filme, a condenação já havia ocorrido, três semanas antes, e a questão era quão ruim seria a sentença e quanto tempo eu ficaria preso. Procuro ser honesto ao falar disso, mas ainda é brutal abordar minha descida ao fundo do poço. E naquele momento eu realmente cheguei ao fundo do poço. Naquela manhã de sexta-feira em que fui ouvir a sentença, ainda tinha um pouco de esperança e torcia pela misericórdia da juíza. Mas tinha de estar preparado para uma sentença dura, como acabou sendo.

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Foi possível extrair alguma lição do tempo que passou na cadeia? Creio que me transformei em uma pessoa mais experiente e humilde depois de tudo que passei na prisão. Sei que minha vida pessoal é uma combinação das alegrias e coisas boas que vivi com esses momentos realmente brutais. Tornei-me uma pessoa melhor ao perceber, contudo, que os dois lados fazem parte igualmente da minha trajetória. Estou mais maduro, mais compreensivo e cuidadoso. Espero também ser um pouco mais sábio para não cometer o mesmo erro duas vezes.

Por que esse cuidado? Eu gostaria de fazer a diferença na última etapa da minha vida. Tenho 55 anos. Tive uma jornada muito intensa, às vezes exageradamente exposta, mas estou prevendo ter mais 25 bons anos pela frente e acho que as experiências que tive, incluindo a vida na prisão, vão me ensinar a fazer as escolhas certas.

Por que foi tão difícil fazer boas escolhas no passado? Em última análise, tudo o que passei é minha responsabilidade. Ninguém me obrigou a cometer os erros que cometi: a culpa é minha. Mas ajuda se o esportista dispuser de um ótimo sistema de suporte, especialmente quando se aposenta. Nessas horas, faz diferença estar num ambiente saudável. É preciso ter bons amigos. São necessários conselheiros inteligentes para ajudá-lo e ensiná-lo o que é certo e o que é errado. Eu acho que não tive a sorte de contar com apoio assim o bastante.

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Em que sentido? Eu não tinha uma rede de proteção. Cometi alguns dos meus maiores equívocos depois que me aposentei e paguei caro por isso. Acho que não sou o único. Talvez seja um dos mais famosos, mas muitos atletas, homens e mulheres, também lutam com suas vidas diárias. Qual é a sua motivação? Por que você quer se levantar de manhã? Em quais desafios você é bom? A certa altura da vida, você já se tornou muito velho para o tênis ou o futebol, e o momento de se reinventar é um grande dilema. Nessa hora, todos nós precisamos de ajuda.

O senhor se converteu em estrela do tênis muito cedo, aos 17 anos. Ser lançado tão jovem no mundo da fama e da competição teve seu preço? Eu me tornei um campeão do tênis praticamente do dia para a noite. Virei uma sensação adolescente, e a mídia me chamava de garoto prodígio. Mas é muito difícil conviver com o título de mágico do esporte. Tudo que eu fiz depois era comparado com as façanhas do meu início de carreira, e esse peso tornou-se demasiado grande para mim. Subitamente, eu me converti em uma das faces mais conhecidas do esporte e do mundo, e isso me mergulhou em autoindulgência, me aproximou das pessoas erradas e me levou a decisões nos negócios de que me arrependeria depois. Virar um campeão tão jovem foi como uma tempestade avassaladora. Ninguém à minha volta estava realmente preparado para isso — nem eu.

Em uma fala marcante no documentário, o senhor diz que estava preparado para jogar e ser campeão, mas não para lidar com dinheiro. Por que essa sina é tão comum no esporte? Não acredito que um jovem atleta deva focar no dinheiro. Ele tem seus pais e outros parentes para cuidar disso. Mas, quando você chega ao topo, a quantidade de dinheiro que fatura é tão grande que é preciso se cercar de profissionais para gerenciar seus negócios. Por mais necessários que sejam, esses administradores de carreira têm seus interesses próprios — e eles nem sempre coincidem com os do atleta. No meu caso, como tenista, eu tinha de focar no treino e na disciplina para encarar torneios difíceis, e não tive alternativa além de confiar em quem geria meus ganhos. Alguns de nós têm sorte nisso e outros, não.

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O senhor pensou em se aposentar das quadras diversas vezes, e teve dificuldade em colocar um ponto-final definitivo na vida de atleta. Por que é difícil para muitos atletas se reinventar? Quando a carreira no esporte acaba, você muitas vezes tem de se tornar um empresário de si mesmo e recomeçar do zero em busca de uma nova ocupação. Lutamos para aprender algo que nunca fizemos antes. Por isso, a hora de parar é o momento mais difícil da vida de um atleta.

Além do senhor, campeões como Björn Borg e Andre Agassi atestaram a dificuldade de manter a sanidade num ambiente de alta competitividade e pressão como o tênis. Por que ser tenista profissional é tão desafiador? O tênis é uma atividade duríssima. Não há outro esporte que seja tão verdadeiramente individual. Não temos companheiros, é somente você diante de seu adversário do outro lado da rede, e ponto. E nós não jogamos contra o tempo: podemos ficar na quadra por três, quatro, cinco horas a fio. Se houver uma pausa em razão da chuva, o jogo se estende por dois ou três dias. Tudo pode acontecer.

“Quando a carreira no esporte acaba, você muitas vezes tem de recomeçar do zero em busca de uma nova ocupação. A hora de parar é o momento mais difícil na vida de um atleta”

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De que forma isso impacta o atleta? É muito exasperante lidar com o desgaste de ter de vencer um rival fortíssimo a cada partida. Não é fácil, como o Andre expõe em sua biografia. Como você se prepara para isso? Como confronta a frustração de falhar? Alguém pode dizer que a pressão num esporte como o boxe é semelhante. Mas nem o boxe submete o atleta à pressão de jogar um Grand Slam, com cinco partidas por semana. É devastador para o físico e a mente.

Como conselheiro e treinador do sérvio Novak Djokovic, o senhor certa vez lhe disse que, para se tornar o atual número 1 do tênis mundial, ele precisava antes derrotar seus demônios internos. Por que isso é importante? Homens ou mulheres, esportistas ou não, todos nós temos demônios internos e precisamos lidar com eles. Novak aprendeu que o reflexo do tenista diante do espelho é nosso adversário mais difícil. Para sobreviver a um torneio e sair vencedor, você precisa ter equilíbrio e disciplina. Ninguém gosta de levar uma vida regrada o tempo todo. Por exemplo: eu adoro dormir de manhã até tarde, e tive de lutar com todas as forças contra isso quando jogava. Há algumas coisas que você não deve fazer para ter sucesso nas quadras.

O senhor tornou-se célebre pela capacidade de reverter de forma épica partidas que pareciam perdidas. Qual o segredo das viradas espetaculares no tênis? De fato, eu tive algumas viradas memoráveis na minha carreira, e gosto de pensar que o atual momento é também uma reviravolta para mim na vida. Devo ter recebido um leite muito bom da minha mãe quando era pequeno ou veio no meu DNA, mas o fato é que tenho um traço de caráter que me ajudou muito: sempre jogo até o fim. Não me permito desistir. Sempre entrei na quadra para ganhar, ainda que isso às vezes traga frustração — porque todo mundo perde, inclusive eu. Mas, mesmo assim, nunca deixei de tentar de novo. É algo que está em mim.

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Quais são seus planos agora, após sair da prisão? Ainda não sei, mas vejo o programa de TV como um bom treinamento. Estou feliz em voltar ao meu velho mundo do tênis e ouvir tantos colegas falando de mim. Isso me fez refletir sobre o passado e aprender com meus erros. É meu desafio agora.

Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837

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