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“Democracia é vital”, diz Elizabeth Frawley Bagley, embaixadora dos EUA

A americana afirma que a afronta aos direitos humanos na Venezuela não é 'narrativa', critica a China e defende que Lula reconheça a Rússia como o agressor

Apresentado por Atualizado em 9 jun 2023, 14h03 - Publicado em 9 jun 2023, 06h00

Figura do alto escalão do Partido Democrata, a americana Elizabeth Frawley Bagley, 70 anos, desembarcou no Brasil em fevereiro para ocupar o posto de embaixadora americana, a mais recente escala numa carreira de quatro décadas em que se fez ouvir em momentos cruciais. Dias depois, estava em pleno Carnaval de Salvador, no camarote de Gilberto Gil. “Já comi moqueca, churrasco e pão de queijo”, diz, ao listar o cardápio em seus dias de estreia no cargo. Elizabeth deixa claro que pretende estreitar os laços entre os dois países, relação historicamente estável, mas que sofreu abalos na gestão de Jair Bolsonaro e vem sendo testada pela atual proximidade entre Brasília e Pequim. Especialista em direito internacional, ela, que já foi embaixadora em Portugal, traz no currículo a participação no tenso acordo de Camp David, que, em 1979, selou a paz entre Egito e Israel. Foi ainda conselheira sênior de sete secretários de Estado, entre os quais John Kerry e Hillary Clinton, e de quatro presidentes, o último deles Joe Biden. No consulado americano no Rio, ela concedeu a VEJA a entrevista a seguir, em que não se esquivou dos mais incandescentes temas da política externa.

Durante encontro com líderes sul-­americanos em Brasília, o presidente Lula afirmou que existe uma “narrativa” global contra a Venezuela e que não é possível não haver por lá “um mínimo de democracia”. Como os Estados Unidos recebem essas declarações? Lula pode dizer o que quiser, o Brasil é um país livre e soberano. Mas nós discordamos. Na prática, milhões de pessoas tiveram de fugir da Venezuela. Estamos torcendo para que aconteçam ali eleições livres e justas no ano que vem. Temos esperança de que Lula, com a amizade renovada com Nicolás Maduro, irá encorajá-lo a realizar um pleito limpo e monitorado por órgãos internacionais, seguindo as diretrizes da ONU.

Lula também teceu críticas às sanções impostas pelos Estados Unidos ao regime de Maduro, que estariam na raiz da profunda crise venezuelana. Faz sentido? Sabemos que Lula e seu governo nunca quiseram sanções unilaterais. Só que elas não são unilaterais. Foram impostas por consenso da ONU. É enganoso dizer que são exclusivamente dos Estados Unidos.

Cuba está há décadas sob embargo americano, sem qualquer mudança em prol da democracia. Seria essa uma medida inócua, que apenas pune a população, como tantos argumentam? O embargo foi relaxado no governo de Barack Obama, mas isso mudou sob a gestão Donald Trump. O presidente Joe Biden compartilha da visão de Obama, de quem inclusive foi vice, mas nós temos de respeitar as regras democráticas. Qualquer mudança no embargo depende de aprovação do Congresso. E não temos votos suficientes.

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Que postura os Estados Unidos esperam do Brasil com relação a ditaduras como as de Venezuela, Cuba e Nicarágua? O Brasil é a maior democracia da América do Sul e, por isso, tem um peso enorme. Esperamos que Lula use sua voz. Ele é um líder de alcance regional e global e deve estimular reformas democráticas e o retorno à normalidade institucional nesses países.

“Não desencorajamos a relação do Brasil com a China, mas aconselhamos: quando entrarem num acordo, mantenham os olhos bem abertos. Eles não são necessariamente confiáveis”

Sobre a guerra na Ucrânia, Lula já disse que americanos e europeus incentivam o conflito e acusou Kiev de também ser responsável pela invasão, ainda que o Brasil tenha condenado a Rússia na ONU. Como os Estados Unidos interpretam essas ambiguidades? De novo: Lula pode falar o que quiser. Mas estamos decepcionados com sua afirmação de que os Estados Unidos e a Europa estão prolongando a guerra. A agressão, nesse caso, é clara e vai contra a Carta da ONU, que Lula reconhece e apoia. Trata-se de um ataque à soberania e à integridade territorial da Ucrânia. Tentamos evitar a guerra desde o início, alertando o presidente Zelensky sobre as intenções da Rússia.

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Lula esteve com o chanceler russo Sergey Lavrov e enviou seu conselheiro Celso Amorim a Moscou. John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, afirmou que ele “repete a propaganda russa e chinesa”. Os Estados Unidos perderam a confiança no presidente brasileiro? Apoiamos qualquer esforço para trazer a paz para a Ucrânia. A questão é saber se Lula está sendo neutro. Esperamos que ele se encontre com Zelensky. Como líder global, o presidente brasileiro não tem só a responsabilidade de apoiar a Carta da ONU, como também de realizar esforços para juntar as duas partes de maneira justa. É preciso reconhecer, porém, que a Rússia é o agressor.

O presidente brasileiro sugeriu a criação de um clube de países para mediar a paz na Ucrânia. Tem chance de funcionar? Não vimos nenhum detalhe do plano. Mas devo reiterar que não teremos paz sem o envolvimento total da Ucrânia, que é a vítima. Achamos importante que todas as democracias do mundo se unam, e também a China, com quem Lula já conversou sobre o assunto.

Lula parece mais imprevisível do que o ex-presidente Jair Bolsonaro? Não conheci Bolsonaro, então não posso me pronunciar sobre o nível de previsibilidade dele. Há algumas coisas que Lula diz com as quais não concordamos, mas, no geral, temos uma relação forte. Biden e Lula passaram três horas juntos no encontro que tiveram em fevereiro, em Washington. Estive lá durante parte do tempo. Falaram sobre democracia, direitos trabalhistas e o grande tema das mudanças climáticas.

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Em abril, Biden anunciou a doação de 500 milhões de dólares para o Fundo Amazônia, mas precisa de aprovação do Congresso. Sem maioria na Câmara, quais as chances reais de acontecer? Biden não teria se comprometido se não fosse cumprir. Obviamente, enfrentamos intensas discussões internas sobre o teto de gastos, que acabaram de se encerrar, e isso concentrou as atenções do Congresso. Mas os primeiros 50 a 100 milhões de dólares já chegam em 2023, e a previsão é de que o total se complete em cinco anos.

Em 2022 e 2023, o Brasil passou a ter direito a assento provisório no Conselho de Segurança das Nações Unidas, e o país já manifestou interesse em se tornar membro permanente. Os Estados Unidos apoiam o pleito? Isso foi levantado no encontro entre Biden e Lula. Biden disse que é o momento de expandir o Conselho de Segurança para América Latina, África e Oriente Médio. Eu acho que, na América Latina, as chances estariam com o Brasil, que é o maior país. Mas Biden não disse especificamente qual seria seu escolhido.

Recentemente, Lula defendeu a criação de uma moeda comum para os Brics. Como enxerga suas críticas ao dólar? Realmente, não entendo. Não sei o que Lula está pensando ou o que vai fazer. O fato é que o dólar é a moeda mais forte do planeta. Nos últimos dias, estive com cerca de sessenta CEOs em São Paulo, e esse assunto surgiu algumas vezes. Todos concordam que o dólar deve ser a moeda padrão, por ser a mais estável.

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Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Os Estados Unidos estão preocupados com a crescente influência chinesa por aqui? O Brasil é um país soberano e pode fazer o que quiser. Não vamos desencorajar a relação com a China, mas, por experiência própria, aconselhamos: quando vocês entrarem num acordo, mantenham os olhos bem abertos. Eles não são necessariamente um parceiro confiável. Têm problemas trabalhistas e com direitos humanos. Além disso, o que Xi Jinping promete vai de fato se concretizar? Os chineses, aliás, não contribuíram para o Fundo Amazônia, o que me deixou surpresa. O histórico deles com a mudança climática não vem sendo bom. Evidentemente que nós também trabalhamos com a China, e continuaremos assim. Mas, como uma católica que recebeu educação jesuíta, uso um mantra chamado “discernimento”. É preciso discernir se essa é uma relação honesta.

Considerada uma “ameaça à segurança nacional” nos Estados Unidos, a Huawei vem ampliando investimentos no Brasil. Como o governo Biden enxerga a crescente presença deles no país? Nossa preocupação é com a confiabilidade e com questões de privacidade e também de ordem trabalhista que envolvem a Huawei.

Nos Estados Unidos debatem-se temas como o reshoring e o nearshoring, políticas que buscam trazer para perto a produção industrial, hoje concentrada na Ásia. O Brasil tem chance de se beneficiar? Com certeza. Tive um encontro recente com governadores americanos e seis deles revelaram interesse em enviar missões comerciais para cá. Os Estados Unidos têm, de longe, o maior investimento estrangeiro direto no Brasil, somando mais de 1 trilhão de reais, e ele está crescendo, ao contrário da China. Os chineses compram commodities de vocês, como a soja, mas não estão trazendo empregos, como nós.

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“Realmente, não entendo as críticas de Lula em relação ao dólar. Estive com vários CEOs em São Paulo e todos concordam que ele deve ser a moeda padrão, já que é a mais estável”

A senhora acha que a corrida pela Casa Branca no ano que vem será especialmente dura, com o país tão polarizado? A política americana, sobretudo em ano de eleições, é de alta voltagem e, por vezes, polarizada. Isso reflete o dinamismo da democracia. Embora nenhum processo eleitoral seja perfeito, sempre tentamos aprimorá-lo, seja no combate à desinformação, seja facilitando o acesso ao voto.

Trump é prejudicial à democracia? Temos uma duradoura e inabalável confiança na força das instituições, em nosso sistema eleitoral e nos valores que os sustentam. A democracia americana veio para ficar.

Há muita reclamação sobre a morosidade na emissão do visto americano a brasileiros. A fila vai diminuir? Existe hoje uma categoria com tempo de espera longo, que são os requerentes de vistos de turismo pela primeira vez. Estamos fazendo o possível. Abrimos agendamentos adicionais e incentivamos os candidatos a verificar regularmente nosso site para novos horários disponíveis.

Os Estados Unidos têm a meta de aumentar a participação feminina na diplomacia, e a senhora é um exemplo. Essa mudança pode impactar a política externa americana? Os Estados Unidos têm feito progressos para garantir que mais mulheres cheguem à diplomacia. Eu tive a honra de ser a primeira embaixadora americana em Portugal, há quase três décadas, e de trabalhar na Casa Branca ao lado de líderes notáveis. Mas, mesmo com essas e outras vitórias, a luta para ampliar a presença feminina não terminará tão cedo. E ela é essencial. As vozes das mulheres adicionam elementos cruciais em todos os setores da vida.

Publicado em VEJA de 14 de Junho de 2023, edição nº 2845

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