Tratamento de canal: Amsterdã corre contra o tempo para não afundar
Famosa por suas belas paisagens, a capital escapou das chuvas na Europa, mas não do eterno embate com as águas
Enquanto países como a Alemanha e a Bélgica contabilizavam os estragos das tempestades que atingiram a Europa, a população da holandesa Amsterdã curtia nas ruas seus bons drinques e passeios de bicicleta típicos de um verão (quase) pós-pandêmico. A cidade famosa por seus românticos canais e museus espetaculares (além dos cafés de marijuana e casas de sexo) escapou, felizmente, do desastre das chuvas. Mas não de outro embate monumental com as águas, tão antigo quanto complexo. Se muitas metrópoles aproveitaram a quarentena para reformar espaços que em dias normais estavam lotados de turistas, Amsterdã acelera um retrofit movido por razão mais grave: a necessidade de salvar construções seculares que começaram a afundar no terreno pantanoso sobre o qual sua paisagem de cartão-postal foi construída. “É como se Amsterdã estivesse se equilibrando sobre um pudim”, explica Paul Meurs, arquiteto e pesquisador do patrimônio histórico local.
Longe de ser exagerada, a comparação do especialista ilustra os desafios de uma cidade erigida no século XIII abaixo do nível do mar, tendo como base milhares de estacas de madeira. É um esquema de construção, aliás, semelhante ao da italiana Veneza, outra problemática joia urbana sobre as águas. Apesar de resistentes, as palafitas de Amsterdã foram projetadas para os tempos das carruagens. Hoje, não suportam o peso de toneladas de caminhões e o vaivém de embarcações turísticas. Curiosamente, o problema se agravou nos anos recentes em razão de uma intempérie oposta à que assolou a Europa, embora também relacionada ao aquecimento global — a escassez de chuva. “O clima da Holanda vem registrando mais períodos de seca, que diminuem o lençol freático e levam as estacas das fundações a apodrecer, já que por séculos eram submersas”, diz Meurs.
O choque de realidade veio em setembro, quando parte do cais Grimburgwal desabou, submergindo 25 metros da calçada de um dos prédios da Universidade de Amsterdã, localizada no Red Light District, o bairro de prostituição. “O aprofundamento do leito do canal foi a primeira causa, seguido do enfraquecimento da alvenaria do cais”, explica Mandy Korff, engenheira geotécnica que liderou a investigação. Ninguém se feriu: por precaução, o acesso ao local havia sido fechado duas semanas antes do desabamento, quando a estrutura já dava sinais de ruína. A poucos passos dali, a famosa ponte levadiça Staalmeestersbrug, conhecida pelos cadeados de amor pendurados, acabou sendo interditada em março depois que se detectou a iminência do seu desmoronamento. Desde então, carros não circulam mais sobre ela. Ironicamente, tantos danos estruturais evidenciam uma cultura que se preocupou muito com as aparências — atraindo 21,7 milhões de turistas anuais, mais de vinte vezes seu número de moradores —, mas descuidou do que não estava visível a olho nu. Além disso, nas últimas duas décadas a cidade ganhou 150 000 novos moradores — um peso muito superior ao que sua estrutura é capaz de suportar.
Até os grandiosos canais Prinsengracht, Keizersgracht e Herengracht — onde estão as casas mais notáveis do século XVII e declarados Patrimônio Mundial da Unesco — passam por intervenções emergenciais. Para revolta de muitos, e como se não bastasse o excesso de vibrações, poeira, poluição e ruído, a paisagem está cada vez menos verde, sequela da retirada de dezenas de árvores monumentais para aliviar a carga nas áreas afetadas.
Após décadas sob vista grossa dos governantes, o vereador Egbert de Vries faz um mea-culpa: “Esse assunto não ganhou a atenção que deveria. Negligenciamos a manutenção, principalmente na supervisão que sinaliza quando reparos são necessários”. À frente do plano de resgate, que segundo estimativas externas deve custar ao menos 2 bilhões de euros (12 bilhões de reais), De Vries garante que os pontos mais degradados já foram detectados, embora seja impossível mapear todos de uma vez — afinal, são 1 600 pontes e 600 quilômetros de cais sob gestão da prefeitura.
Com isso, os primeiros sinais de mudança começam a trazer alívio às estruturas vulneráveis de Amsterdã. Foi estabelecido um limite de peso para veículos nas áreas centrais e incentivado o uso das hidrovias. “Espero que em vinte anos vejamos uma cidade renovada”, diz De Vries. Que a mesma sabedoria que permitiu aos holandeses do passado construir a cidade sobre o mar ilumine seus descendentes para mantê-la à tona.
Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748