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Tema explosivo na eleição americana, aversão a imigrantes se espalha pelo mundo

Os Estados Unidos não estão sozinhos no sentimento anti-imigrantes. Ele permeia toda a Europa

Por Ricardo Ferraz, Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 26 ago 2024, 15h27 - Publicado em 23 ago 2024, 06h00

Vibrante e barulhenta, em clima de festival, a convenção nacional do Partido Democrata consagrou a candidatura de Kamala Harris à Casa Branca com empolgação acima do normal. Durante quatro noites, perante uma plateia que ensaiava coreografias nos intervalos, em meio a shows de música, discursaram os luminares do partido, começando pelo desistente Joe Biden (reverenciado e elogiadíssimo, mas que de lá seguiu direto para férias na Califórnia, bem longe da comoção), passando por nomes como Hillary e Bill Clinton e Barack e Michelle Obama, aumentando o tom da animação com o candidato a vice, Tim Walz, e culminando com o muito esperado pronunciamento da própria Harris. Falou-se do currículo e das realizações dela e de Walz, do zelo pelo futuro (lema da campanha), da geração de empregos, da ampliação de benefícios sociais, das guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza, da reposição do direito ao aborto e, sobretudo, da preservação da democracia diante da ameaça institucional que o republicano Donald Trump representa.

Um assunto, no entanto, não teve o destaque merecido, e ele deve ser o mais apimentado no embate presidencial: como conter e o que fazer com as levas de imigrantes sem visto que entraram nos últimos tempos nos Estados Unidos. A diversidade étnica da sociedade americana foi várias vezes mencionada, bem como referências ao melting pot local, o caldeirão onde cabem todas as raças, religiões e tradições culturais. Na realidade, porém, a nação mais poderosa do planeta, erguida por imigrantes recebidos em Ellis Island, Nova York, pelo “abraço universal” da Estátua da Liberdade, como consta no poema O Novo Colosso, gravado aos pés do monumento, hoje é mais propensa a mandar de volta para casa as “massas cansadas, pobres e amontoadas” (outro trecho do mesmo poema) que esgarçam os limites da assistência social e perambulam pelas esquinas das grandes cidades, vendendo comida e bala — um problema social que afeta inclusive Chicago, a sede da convenção, onde o governo conservador do Texas despejou ônibus de estrangeiros em busca de vida melhor.

ESQUENTA - Harris abraça Biden na convenção: festa antes de a corrida eleitoral começar de fato
ESQUENTA - Harris abraça Biden na convenção: festa antes de a corrida eleitoral começar de fato (Andrew Harnik/Getty Images)

Os Estados Unidos não estão sozinhos no sentimento anti-imigrantes. Ele permeia toda a Europa, corroendo valores, insuflando hostilidades e poluindo a fachada de aceitação e suporte dos mais necessitados — meio condescendente, mas real — dos países ricos do Ocidente. “O que costumava ser um pilar das identidades ocidentais tornou-se uma questão cada vez mais politizada, alvo de ataques populistas por todo o mundo desenvolvido”, diz Nando Sigona, especialista em migração internacional da Universidade de Birmingham, na Inglaterra.

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O tema é particularmente sensível para Harris, escalada no início do governo de Biden para implementar um projeto de cooperação com os governos centro-americanos que contivesse as multidões que, assoladas pela pobreza e pela violência das quadrilhas de narcotraficantes, arriscavam tudo tentando entrar nos Estados Unidos pela divisa mexicana. A missão da vice-presidente, em quem os republicanos pregaram o apelido de “czar da fronteira”, teve resultado zero.

De marcha em marcha, o número de imigrantes ilegais chegou neste ano a mais de 10 000 por dia, criando um estado de tensão social vastamente explorado pela oratória trumpista. Resultado: no país de tanta saudável mistura, mexicanos, venezuelanos, hondurenhos, guatemaltecos e haitianos, entre outras nacionalidades, quando não tachados sumariamente de criminosos, são vistos como tomadores de empregos locais, aproveitadores de abrigos e refeições gratuitas e, no limite, procriadores seriais que almejam se apoderar dos privilégios da população branca — um temor que está no cerne da ilusória, mas popularíssima, teoria da substituição.

REAÇÃO - Britânicos vão às ruas contra a xenofobia: “Não” à provocação da direita radical
REAÇÃO - Britânicos vão às ruas contra a xenofobia: “Não” à provocação da direita radical (Vuk Valcic/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

O sentimento extrapola os apoiadores de Trump e faz do tema a segunda maior preocupação entre os americanos, atrás apenas da inflação (que está cada vez mais controlada). “Assassinos e terroristas estão vindo para nosso país”, costuma bradar Donald Trump, invocando uma suposta “onda de crimes”. O fato: a violência está em queda nos Estados Unidos e os imigrantes, estatisticamente, cometem menos crimes por medo de serem pegos e deportados.

A “ameaça estrangeira”, atribuída à “leniência” do governo Biden em relação à entrada de ilegais, aparece constantemente nas postagens em letras maiúsculas do ex-presidente em sua rede, a Truth Social, e tem lugar de honra na campanha republicana: de janeiro a julho, foram gastos 250 milhões de dólares em 700 anúncios pregando inverdades assustadoras. “Há décadas os republicanos atacam os democratas por conta da segurança da fronteira. Mas, nessa questão, os dois partidos têm agido de forma semelhante”, diz Ernesto Castañeda, diretor do Laboratório de Imigração da American University, em Washington.

De fato, Biden assumiu a Presidência com um discurso de acolhimento aos imigrantes, mas, uma vez no governo, engatou a marcha à ré e fez poucas mudanças nas políticas adotadas no mandato de Trump. Depois que um projeto rigoroso para fechar a entrada de ilegais foi rejeitado no Congresso — por ordem de Trump, ironicamente, que não quis dar esse trunfo ao adversário —, a Casa Branca baixou em abril um decreto reforçando o efetivo da “Migra”, a temida patrulha da fronteira, e restringindo as possibilidades de pedido de asilo. Até os vistos de trabalho para profissionais qualificados, que costumam fazer carreira nas prestigiadas universidades do país, se tornaram mais difíceis.

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DESESPERO - Africanos detidos em bote precário: milhares de mortes por afogamento no caminho para a Europa
DESESPERO - Africanos detidos em bote precário: milhares de mortes por afogamento no caminho para a Europa (Yassine Gaidi/Anadolu Agency/Getty Images)

O governo Biden também conseguiu finalmente firmar acordos com o México e países da América Central para conter o fluxo de gente que ruma para o norte. Na terça-feira 20, o Panamá, um dos signatários, fez a primeira deportação de imigrantes ilegais: 29 colombianos voltaram, algemados, para seu país em um voo fretado pelos Estados Unidos. A grande maioria dos estrangeiros que chega ao Panamá, porém, são venezuelanos que arriscam a vida cruzando a pé a tenebrosa selva de Darién, que liga as Américas do Sul e Central e é conhecida como “selva da morte”. Não se sabe o destino deles, visto que os dois países estão com relações cortadas.

A situação na Venezuela preocupa particularmente os democratas, diante da previsão de uma nova debandada caso o ditador Nicolás Maduro consiga permanecer no poder após fraudar as eleições. A diáspora venezuelana — 7,7 milhões de pessoas desde 2014 — é hoje a maior do mundo, uma situação que afeta diretamente o Brasil. Na última década, mais de 1 milhão de venezuelanos cruzaram a fronteira por Pacaraima, cidade de Roraima na linha divisória entre os dois países, onde o Exército mantém uma operação permanente de acolhimento aos imigrantes — que, em geral, sonham em dali seguir para Miami.

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BARREIRA - Meloni, da Itália: cerco para fechar os portos à imigração ilegal
BARREIRA - Meloni, da Itália: cerco para fechar os portos à imigração ilegal (Alessandra Benedetti/Corbis/Getty Images)

A instabilidade política é o principal motor que impulsiona os deslocamentos populacionais das últimas duas décadas nas Américas e no Oriente Médio (onde o êxodo se concentra na conflagrada Síria). Ao menos 59 conflitos foram registrados no ano passado, o mais violento desde a Segunda Guerra Mundial, de acordo com o Instituto de Pesquisas de Paz de Oslo, fator que se alia à pobreza no caso dos africanos em marcha para a Europa. Nos últimos tempos, vem crescendo também o número de chineses na rota para o Eldorado americano. Neste cenário, o movimento de pessoas que abandonaram sua terra chegou a 114 milhões em 2023, um recorde. América Latina e Caribe perderam quase 400 000 habitantes, e a África, cerca de 700 000, segundo a ONU. “A chegada dessa multidão promove transformações inevitáveis na demografia e cultura dos países de destino. Embora tragam benefícios em termos de economia e diversidade, as mudanças geram angústia”, avalia Giuseppe Sciortino, sociólogo da Universidade de Trento, na Itália.

Enxergar no imigrante o ladrão de empregos que faz estremecer as tradições culturais e religiosas de um país não é propriamente novo e já serviu de estopim para inúmeros conflitos — afinal, foi a rejeição aos diferentes que moveu Adolf Hitler a cometer as barbaridades do nazismo contra os judeus. Mas a ocorrência da migração em massa nas duas últimas décadas, em paralelo à intensificação das hostilidades provocada pela violência de sangrentos atentados terroristas, plantou um triste cipoal de ódio e xenofobia no mundo civilizado. A viralização desse sentimento tem potencial para desgastar, nas sociedades desenvolvidas, o respeito e a adesão implícita a princípios básicos — dignidade, solidariedade, tolerância — cultivados no pós-guerra como garantia de que o horror não se repetiria. “A imigração tornou-se um fenômeno indesejável, vista como uma invasão”, resume Karen Musalo, diretora do Centro de Estudos de Gênero e Refugiados, da Califórnia.

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ROTA DE FUGA - Venezuelanos cruzam a fronteira brasileira: fluxo deve aumentar se Maduro ficar
ROTA DE FUGA - Venezuelanos cruzam a fronteira brasileira: fluxo deve aumentar se Maduro ficar (Reynesson Damasceno/Ato Press/Agência O Globo/.)

Nos países europeus, a repulsa aos imigrantes ganhou tal dimensão que a própria União Europeia tomou uma série de providências para dificultar a entrada. Lá, como nos Estados Unidos, a direita radical fez dessa rejeição sua principal bandeira e com ela vem ganhando espaço político e social, apostando no temor da população nativa de ser engolida pelos estrangeiros e, por outro lado, na resistência dos imigrantes a mudar seus usos e costumes. Fechar as portas à imigração é política praticada com notável empenho pelos dois principais governos da direita populista na Europa, o de Viktor Orbán, na Hungria, e o de Giorgia Meloni, na Itália. Orbán ergueu barreiras de arame farpado na fronteira, orgulha-se de assim haver preservado seu país como “uma ilha de paz” e, em recente visita a Berlim, comentando a grande quantidade de estrangeiros nacionalizados, observou que na Alemanha “até o cheiro está diferente”.

Meloni, por sua vez, defende um bloqueio naval do Mediterrâneo para impedir que balsas de refugiados cheguem aos portos italianos e advoga uma proposta de mudança na lei que dá cidadania, sob condições, aos filhos de imigrantes nascidos na Itália — mesmo se indispondo com torcedores que comemoraram a medalha de ouro olímpica da equipe de vôlei feminino, onde a estrela, Paola Egonu, é filha de nigerianos. “A direita radical não tem um projeto claro do ponto de vista econômico e se organiza em torno da guerra cultural”, ressalta Guilherme Casarões, professor da FGV-­SP. “É fácil apontar o dedo para quem se veste diferente, fala com sotaque e tem valores distintos.”

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MUDANÇA - Ellis Island em 1902: agora, o desejo é que voltem para casa
MUDANÇA - Ellis Island em 1902: agora, o desejo é que voltem para casa (Ullstein Bild/Getty Images)

A preservação de princípios saudáveis não é uma causa perdida. No segundo turno das eleições parlamentares da França, em junho, políticos e eleitores se uniram para impedir a vitória da coalizão da ultradireitista Marine Le Pen, paladina da repressão aos imigrantes. Na Inglaterra, quando um assassino esfaqueou e matou três meninas em uma aula de dança no início do mês e as redes sociais espalharam o boato de que se tratava de um ilegal, grupos de direita promoveram distúrbios e quebra-quebra e convocaram uma megamanifestação — que não aconteceu porque milhares de cidadãos foram às ruas condenar a xenofobia. Reações como essas são exemplares, mas não apagam a mancha que a aversão aos imigrantes espalha na Europa e nos Estados Unidos. É um problema monumental, sem solução à vista e perigoso.

Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907

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