Renúncia de António Costa abre caminho para extrema direita portuguesa
Um dos políticos mais bem-sucedidos da Europa sai de cena entre denúncias de corrupção
Enquanto a esquerda europeia recuava nos últimos anos, abrindo espaço para governos de centro-direita de mãos dadas com partidos nanicos radicais, Portugal caminhou na direção oposta. No poder desde 2015, o primeiro-ministro António Costa, do Partido Socialista (PS), primeiro liderou com habilidade uma coalizão-saco de gatos apelidada de “Geringonça”. Há um ano e meio, convocadas novas eleições, Costa permaneceu à frente do governo, desta vez amparado por uma confortável maioria absoluta no Parlamento. Com tal currículo, foi definido como “bastião” em meio a “uma década neoliberal na Europa” por outro ícone da resistência socialista, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez. Se a ascensão foi paulatina, a queda foi abrupta: Costa renunciou ao cargo horas depois de uma megaoperação que investiga corrupção em negócios ligados à transição energética atingir o núcleo duro de seu governo. “A dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com qualquer suspeição”, proclamou, negando qualquer envolvimento pessoal em falcatruas.
O presidente Marcelo Rebelo de Sousa decidiu dissolver o Parlamento e convocar novas eleições para 10 de março do ano que vem, em um cenário que dá vantagem à oposição e intensifica os ânimos do Chega, partido de direita radical fundado em 2019, que tem atualmente doze deputados. Em seu pronunciamento, Costa afirmou que não vai se candidatar novamente, independentemente do resultado da investigação. Resultado: além de atolado na lama, o Partido Socialista ainda precisa escolher um novo líder para competir com Luís Montenegro, do Partido Social Democrata (PSD), que está 4 pontos à frente nas pesquisas — um avanço e tanto em relação à eleição de 2022, na qual os socialistas conquistaram sozinhos 41,4% dos votos. A legenda de Montenegro, mesmo saindo na dianteira, não teria força para governar sozinha e precisaria se aliar ao Chega, liderado pelo ex-jornalista esportivo André Ventura, com 13% dos votos nas pesquisas — 6 pontos a mais do que no ano passado. “A ultradireita tem condições de ganhar musculatura para fazer parte de uma coalizão e ser alçada ao governo”, confirma Pascoal Pereira, professor de política da Universidade de Coimbra, projetando para Portugal o mesmo tipo de avanço da direita radical que se observa na Polônia, Alemanha, Itália e outros países europeus.
Somada à instabilidade política, a economia pode ser decisiva na votação de março (até lá, Costa segue no posto). Liderado pelos socialistas, Portugal tornou-se uma história de sucesso europeia, com políticas progressistas de saúde e bem-estar social e isenções fiscais atraindo turistas e ricos investidores — movimento apelidado, como é de praxe no humor português, de “capitalismo sardinha”. O PIB deve crescer 2% neste ano e a dívida pública ficará, pela primeira vez, abaixo dos 100% em 2024. É provável que o escândalo de agora, no entanto, com seu componente de risco político e corrupção, afete o nível de investimentos estrangeiros, equivalentes a 71% do PIB, de acordo com a OCDE. Para piorar, os portugueses sofrem as consequências de uma crise habitacional grave, em que os aluguéis sobem aceleradamente, forçando as pessoas a sair de suas casas.
A renúncia de Costa pode ter sido surpreendente, mas as suspeitas de irregularidades nos projetos de transição energética remontam a 2019. Na corrida para atingir as metas de emissões de carbono, Portugal simplificou requisitos ambientais e concedeu licenças a propostas controversas, como a mina de lítio em Covas do Barroso, um Patrimônio Agrícola Mundial. Também são investigadas, por denúncias de favoritismo a certas empresas, a exploração do mesmo lítio no município de Montalegre e uma usina de hidrogênio verde em Sines, no sul do país. Na megaoperação que derrubou Costa, mais de 140 agentes realizaram buscas até no Palácio de São Bento, residência oficial do primeiro-ministro. Das cinco pessoas detidas, duas são do círculo próximo de Costa: seu chefe de gabinete, Vítor Escária, e seu amigo e empresário Diogo Lacerda, acusados de prevaricação, corrupção e tráfico de influência. O ministro das Infraestruturas, João Galamba, foi declarado arguido (suspeito oficial).
Galamba foi responsável pela ruptura na relação cordial que Rebelo de Sousa e Costa sempre mantiveram: contra a vontade do presidente, o primeiro-ministro insistiu em mantê-lo no governo, apesar de uma série de polêmicas, que incluem intimidações, brigas e a intervenção dos serviços secretos. Lacerda, amigo de Costa desde os tempos de universidade em Lisboa e seu padrinho de casamento, parece ter aproveitado a proximidade para obter ganhos ilícitos em contratos públicos, como a estatização da companhia aérea TAP, auxiliado pela influência de Escária. O nome do próprio Costa chegou a ser citado na transcrição de uma escuta telefônica feita pelo Ministério Público, mas rumores que passaram a circular põem na mesa a hipótese de que a menção seria ao seu homônimo, o ministro da Economia. “O primeiro-ministro, ao que tudo indica, não aplicou às pessoas ao seu redor a mesma ética rigorosa que diz seguir”, ressalta Igor Lucena, da Associação Portuguesa de Ciência Política. Uma pena.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868