Refazendo laços: a viagem de Biden à Europa
Em seu primeiro compromisso fora do país, o presidente americano alinha parceiros na sua cruzada contra o poderio da China
A primeira viagem internacional de Joe Biden como presidente, para um encontro do G7 no Reino Unido, não rendeu muito em termos concretos, e nem se esperava que rendesse, já que seu objetivo maior era sondar os ânimos e dizer a que veio. Mas em matéria de astral entre os participantes — quanta diferença. Depois de quatro anos de carrancas e sorrisos sem graça perante a prepotência e as grosserias de Donald Trump, sobraram simpatia, cumprimentos afáveis e alívio geral no resort da Cornualha onde presidentes, primeiros-ministros e a alta cúpula da União Europeia se reuniram. “É ótimo ter um presidente americano que faz parte do clube e está disposto a cooperar”, derramou-se Emmanuel Macron, da França.
Acostumado a lidar com mandatários estrangeiros, uma de suas funções nos oito anos em que foi vice de Barack Obama, Biden deixou claro que deseja reatar os laços que Trump despedaçou e, ao mesmo tempo, alinhar a Europa com as diretrizes de sua política externa, onde a China e a Rússia figuram como inimigos da democracia que precisam ser combatidos. Nesse ponto, o presidente americano vai ter de se esforçar — escaldados pela volubilidade trumpista, os governos do continente hoje fogem do costume de alinhamentos automáticos dos velhos tempos. “Quatro anos de recados duros e de imposição de tarifas acenderam nos europeus o anseio pelo que veem como uma autonomia estratégica”, diz Matthew P. Goodman, vice-presidente do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, de Washington.
Biden apresentou a China e, em menor escala, a Rússia como governos autocráticos aos quais os países democráticos têm obrigação de se contrapor. O comunicado final do encontro mostra que conseguiu unificar forças em relação aos direitos humanos, exigindo dos chineses “respeito às liberdades fundamentais”, e na condenação do “comportamento desestabilizador” e das “atividades perniciosas” de Vladimir Putin, ao interferir em processos eleitorais alheios e reprimir com violência a oposição. Também foi bem recebido entre os líderes europeus o plano americano de impor um imposto global aos grandes conglomerados, visando principalmente às big techs.
Mas a intrincada teia de interesses econômicos europeus, onde matérias-primas vindas da Rússia e maciços investimentos procedentes da China têm papel primordial, emperrou propostas mais ambiciosas de Biden, como a tentativa de estabelecer prazos para o fim do uso de carvão no fornecimento de energia (os chineses são os maiores vilões desse atentado ao meio ambiente) e a criação de um fundo de ajuda financeira a países mais pobres que sirva de contraponto à Nova Rota da Seda, monumental iniciativa chinesa deslanchada em 2013 para turbinar sua influência externa que já despejou quase 4 trilhões de dólares no desenvolvimento de portos, estradas, ferrovias e mais de 2 600 projetos em uma centena de países (europeus, inclusive).
Aproveitando a viagem, o presidente americano fez agrados à desgastada Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que Trump considerava irrelevante, e dela arrancou um vigoroso alerta para a ameaça ao Ocidente representada não só pelo rival tradicional, a Rússia, como, isso mesmo, pela China. Biden ainda engatou uma conversa de três horas com Putin em Genebra, que o russo qualificou de “positiva” e o americano, de “produtiva”. Um ponto central de discordância foi a questão dos frequentes ciberataques praticados por hackers empenhados em extorquir instituições e empresas e, ao que tudo indica, abrigados na Rússia. Biden apresentou a Putin uma lista de dezesseis setores nos Estados Unidos que, se forem atacados, terão resposta “à altura”. O russo não se abalou — negou terminantemente que seu país tenha algo a ver com o problema. No fim, concordaram em agir em conjunto para prevenir esse tipo de crime e em devolver os respectivos embaixadores a seus postos — eles haviam sido chamados de volta em consequência de crises diplomáticas.
A porção social da visita teve Jill Biden vestindo uma jaqueta com a palavra “Love” (Amor) bordada nas costas, imediatamente interpretada como resposta ao “Eu não ligo a mínima, e você?” pintado em um casaco usado por Melania Trump em 2018. Em outro ponto relevante, o altíssimo escalão da monarquia britânica — a rainha, o herdeiro Charles e o herdeiro dele, William, com as respectivas esposas — compareceu em peso para um bate-papo ao ar livre com os mandatários do G7, o primeiro convescote do gênero em mais de um ano. Ao fim do périplo europeu, Biden resumiu realisticamente o resultado: “Fiz o que tinha me proposto fazer”. O trabalho de recompor a influência internacional dos Estados Unidos, após quatro anos de “Os Estados Unidos em primeiro lugar”, está só começando.
Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743