Quem disse que seria fácil? Guerra mostra força da resistência ucraniana
Um mês depois de invadir a Ucrânia, as tropas russas pouco avançaram. Há uma lição da inaceitável agressão: nem sempre a supremacia militar vence
Quando, no escuro começo de uma manhã de inverno, o poderoso aparato militar da Rússia cruzou a fronteira e invadiu a Ucrânia, todo mundo viu ali o início de uma operação fulminante, na qual as forças de Vladimir Putin avançariam rapidamente e em questão de dias ocupariam a capital, Kiev, forçando a rendição do governo. Pois bem: passado um mês, os russos continuam tentando abrir corredores de livre movimentação, sem sucesso. Das duas cidades que ocuparam, uma — Makariv, às margens de uma estrada que leva a Kiev — foi retomada pelos ucranianos e na outra, Kherson, a população segue resistindo. As fotos da guerra mostram, do lado russo, aviões e tanques destruídos e comboios de ônibus levando mortos. No porto de Berdiansk, ao menos um navio de desembarque de tropas foi atingido e afundou. O que, afinal, está segurando os russos?
Um fator inesperado é, sem dúvida, a resistência da Ucrânia, estimulada pelos discursos do presidente Volodymyr Zelensky. Nas cidades atacadas, os ucranianos combatem rua a rua, com soldados e milícias de voluntários. A Força de Defesa Territorial criada pelo governo tem 120 000 reservistas divididos em vinte brigadas. Os ataques praticados por grupos pequenos e ágeis, que escapam rapidamente, desafiam o passo pesado dos regimentos russos. Nas bases aéreas, nos aeroportos e até nas estradas, todas as noites pilotos ucranianos levantam voo para enfrentar os bombardeiros prontos para atacar cidades, engajando-se em um tipo de combate aéreo que só se via em filmes. O Oryx Blog, que rastreia danos de equipamentos militares a partir de fotos, calcula que a Rússia perdeu 1 666 veículos militares, incluindo 111 tanques e 312 caminhões. Ao menos vinte oficiais de alta patente morreram, entre eles cinco generais. Na segunda 21, o jornal Komsomolskaya Pravda contabilizou 9 861 soldados mortos, muito mais do que os 498 divulgados pelo Kremlin. Minutos depois, o Pravda retirou a informação do ar, alegando que seu site havia sido hackeado.
Em trens e comboios vindos da Polônia, a Ucrânia recebe grande quantidade de equipamento militar de alcance limitado. Os Estados Unidos anunciaram que vão mandar 2 000 mísseis antitanque e 20 milhões de munições, ao custo de 800 milhões de dólares. Além das baterias antitanque e antiaéreas, as forças ucranianas usam drones fabricados na Turquia, pequenos, mas letais contra blindados — um deles destruiu um sistema de mísseis russo avaliado em 50 milhões de dólares. “A Rússia encontrou um Exército diferente daquele que enfrentou na invasão da Crimeia, em 2014”, diz Liam Collins, diretor do Modern War Institute, em Nova York.
A invasão e posterior anexação da Crimeia foi, ela sim, um passeio para a Rússia: a população apoiou, a reação militar mostrou-se pífia e até as sanções econômicas da época pouco efeito tiveram. De lá para cá, porém, o Exército ucraniano passou por uma modernização progressiva patrocinada por Estados Unidos e Otan, a aliança militar do Ocidente que Putin considera uma ameaça. Até 2021, o governo americano injetara 2,7 bilhões de dólares em armas e treinamento. Na base militar de Yavoriv, em Lviv, próxima à fronteira com a Polônia e destruída neste mês, cinco batalhões se formavam todo ano. O governo ucraniano expandiu as Forças Armadas incorporando grupos paramilitares de extremistas espalhados pelo país, sobretudo na região de Donbas, uma vasta área no leste da Ucrânia onde, depois do sucesso na Crimeia, a Rússia alimentou um movimento separatista.
Entre esses grupos está o Batalhão Azov, violento bando neonazista integrado por franco-atiradores de diversas nacionalidades, brasileiros inclusive. O Azov nasceu em Mariupol, cidade portuária em Donbas, com o objetivo de defendê-la dos separatistas — a mesma Mariupol que os russos agora bombardeiam sem parar. Convém, contudo, não usar o radicalismo do grupo como pretexto para a inaceitável invasão promovida por Putin. “A incorporação do Azov pelas forças oficiais está na base dos argumentos usados pelo Kremlin para equivocadamente classificar a Ucrânia como um estado nazista”, diz Christian Leuprecht, analista do Royal Military College, no Canadá. Em Mariupol, sitiada e devastada, sem água, luz ou energia, as bombas do Kremlin já acertaram uma maternidade e um teatro onde se abrigavam mais de 1 000 pessoas. Até o clima atrapalhou. Neste fim de inverno, o gelo que se derrete e as primeiras chuvas de primavera formam lamaçais intransponíveis. “Os blindados são obrigados a circular pelas rodovias, o que os deixa vulneráveis a ataques”, diz o historiador francês Michel Goya.
Com a invasão mal parada, as sanções sangrando a economia e sua capacidade sob escrutínio, Putin tratou nos últimos dias de apertar ainda mais o cerco à oposição (para ele, um conceito muito amplo). A proibição de criticar a “operação especial” na Ucrânia foi estendida a qualquer ação de qualquer entidade oficial que atue no exterior. Levado a julgamento por uma esdrúxula acusação de fraude, seu maior opositor, Alexei Navalny — que já está confinado a uma penitenciária e surgiu no tribunal magro e pálido — foi condenado a mais nove anos de prisão, uma tentativa de calar seu apelo por protestos contra a guerra, que escreve em pedaços de papel, entrega a seus advogados e eles postam nas redes sociais.
No campo de batalha, os ataques ficam mais letais — inclusive em Kiev, onde uma bomba destruiu um shopping center e matou oito pessoas. Na esgrima verbal, Putin avisou que os pagamentos pelo gás russo consumido pela Europa terão de ser a partir de agora em rublos — moeda tóxica da qual os bancos querem distância. O americano Joe Biden, por sua vez, estendeu as sanções econômicas aos deputados pró-Putin — o anúncio foi feito em uma reunião extraordinária da Otan, em Bruxelas, para discutir a reação conjunta à escalada das hostilidades. Com cada parte em seu canto, um cenário plausível é que, na mesa de negociação, a Ucrânia se comprometa a não entrar para a Otan e a aceitar a ingerência russa na Crimeia e Donbas (com 90% de aprovação, Zelensky teria cacife para tal), os aliados ocidentais removam parte das sanções e Putin bata no peito, alardeando que suas exigências foram atendidas, e recolha a tropa. Seria uma saída sem vencedores, mas abriria espaço para uma pausa na inadmissível matança.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782