Que fleuma, que nada
Quanto mais perto chega a hora do Brexit, mais o Reino Unido se enreda em brigas internas sobre como fazer a separação
Alguma coisa está muito errada quando um primeiro-ministro tem de entrar em choque com o próprio partido para permanecer no poder, enquanto a oposição assiste ao embate de camarote. Essa é a incômoda posição da britânica Theresa May, constantemente golpeada por correligionários conservadores que discordam da forma como ela vem conduzindo a questão que monopoliza as discussões, por ser vital para o futuro do Reino Unido: como desatar os laços que amarram o país à União Europeia e cumprir a decisão do plebiscito que aprovou o chamado Brexit, em 2016.
Há uma semana, May submeteu a seu ministério um suado acordo com a UE sobre os termos do divórcio. Obteve uma aprovação “coletiva” que não durou 24 horas — vários membros do gabinete renunciaram por discordar da proposta. Na quarta-feira 21, ela deixou o partido em polvorosa em Londres e viajou para Bruxelas, onde arrancou de Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, termos mais abrangentes e palatáveis para o seu acordo. No domingo 25, a forma final — ainda cheia de pontos vagos — deve receber o sim dos demais países da UE e seguir para a mãe de todas as batalhas: o sim da Câmara dos Comuns.
Nestes dois anos em que está no poder, Theresa May, uma deputada sem grande projeção nem base sólida que chegou ao cargo meio por acaso, vem mostrando uma capacidade extraordinária de balançar, balançar, balançar e não cair. Logo em seguida à rebelião do ministério, o deputado Jacob Rees-Mogg, líder da ala linha-dura do Partido Conservador (que prega uma saída sem concessões), iniciou a coleta de 48 cartas de colegas parlamentares com o pedido de um voto de censura à primeira-ministra, o que resultaria em votação no plenário da Câmara que poderia levar à sua destituição. Dias depois, Rees-Mogg capitulou: só 26 compareceram. É provável que vários tenham dado para trás temendo que Theresa May, mestra na arte da sobrevivência, driblasse a rebelião e saísse vitoriosa, o que não apenas a fortaleceria como impediria mais manobras contra sua liderança até 2020. Rees-Mogg promete reeditar o esforço nas próximas semanas.
Em outro front da guerra interna do Partido Conservador, o loiro descabelado Boris Johnson, que renunciou ao cargo de ministro das Relações Exteriores por causa do Brexit de Theresa May, confirmou presença no sábado 24 na convenção do Partido Unionista Democrático (DUP, em inglês), da Irlanda do Norte — com certeza para pôr lenha em uma fogueira de atritos. O DUP conta apenas com dez deputados, mas sem eles ninguém tem maioria na Câmara. Eles se aliaram à primeira-ministra, mas agora condenam seu acordo, descontentes com uma cláusula que dispõe sobre o comércio e o controle de fronteiras entre a Irlanda (que, independente, continuará na UE) e a Irlanda do Norte (que, integrante do Reino Unido, sairá). Com as armas ainda recolhidas, mas brandindo a ameaça de uma moção contra Theresa May a qualquer momento, a oposição trabalhista costura alianças a favor de uma eleição antecipada, e o bloco anti-Brexit cultiva a esperança de um novo plebiscito que reverta a separação. A data do divórcio está marcada: 29 de março de 2019. Se não houver acordo até lá, prevê-se o caos.
A aprovação do Brexit, em 2016, contribuiu para insuflar o sentimento anti-UE da onda direitista que varre a Europa e incentivar desafios nunca vistos à ordem instituída. Os governos da Polônia e da Hungria, promotores do nacionalismo exacerbado, ensaiaram medidas contrárias às normas do bloco. Nenhum país, porém, foi tão longe na desobediência quanto a Itália. Lá, a coalizão populista que assumiu o governo em junho aprovou um orçamento para 2019 que prevê aumento de despesas, em vez de corte, e um déficit de 2,4%, o triplo do atual (a dívida italiana está em 131% do PIB — a segunda maior da UE, atrás apenas da semifalida Grécia).
Fazem parte do orçamento a reposição de benefícios a aposentados cortados pelo governo anterior e uma redução de impostos — o oposto do que os estatutos recomendam para um país em má situação financeira. A Comissão Europeia rejeitou o documento e fixou o prazo de três semanas para que fosse modificado. O vice-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini ignorou a ordem, manteve o planejado e avisou: “Voltamos a conversar daqui a um ano”. Desrespeitada, a comissão prepara-se agora para impor multas e sanções a Roma — o que jamais aconteceu em setenta anos de UE. “O confronto que a Itália impôs é inédito para o bloco”, diz a economista Beverly Barrett, da Universidade de Saint Thomas, em Houston, nos EUA.
Na França, onde o presidente Emmanuel Macron tem os dois pés plantados na UE, um novo imposto sobre a gasolina destinado a desestimular o uso de carros pode vir a alavancar o sentimento anti-Europa acalentado pela extrema direita. Em mais um movimento sem líderes atiçado pelas redes sociais, cerca de 300 000 manifestantes, descontentes com o aumento da gasolina, bloquearam estradas de norte a sul do país no fim de semana. Vestidos com o colete amarelo que faz parte do kit de segurança dos carros e que virou seu símbolo, franceses das cidades pequenas do interior, em geral avessos a grandes mobilizações, foram às ruas em repúdio a Macron, um ambientalista convicto. O protesto reanimou a direita radical de Marine Le Pen, que ficou em segundo lugar nas eleições e prega, ela também, a saída da União Europeia.
Do mesmo jeito que alimentou os ventos de defecção dentro da UE, porém, o Brexit agora vem contribuindo para frear essa ambição: ninguém quer sentir na pele o inferno astral que acomete o Reino Unido, nem correr o risco de ver a economia de cabeça para baixo caso não se chegue a um acordo. Apesar de tudo, o italiano Mauro Gatti, da Universidade de Luxemburgo, garante: “A sobrevivência da UE não está em risco”.
Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610