Putin sobe o tom e dá sinais de que a guerra está longe de acabar
Em reação aos avanços ucranianos, o presidente russo convoca reservistas, apressa a anexação de áreas ocupadas e reedita a ameaça nuclear
Ninguém esperava que a Rússia ficasse quieta enquanto tropas ucranianas, em uma ação militar dividida em várias frentes e armada com novos e poderosos equipamentos cedidos pelos Estados Unidos, retomavam cidades estratégicas por meses ocupadas pelos russos. E não ficou mesmo. Em discurso gravado e transmitido pela televisão, o presidente Vladimir Putin anunciou a convocação imediata de 300 000 reservistas “para proteger a pátria”. Em tom mais agressivo do que de costume, mencionou um imaginário plano do Ocidente para “desintegrar” a Rússia e avisou: “Os que nos chantageiam com armas nucleares devem ter em mente que o catavento pode virar e apontar para eles”. Olhando para a câmera com seu peculiar estilo, disparou: “Isso não é um blefe”.
Horas depois, discursando na Assembleia-Geral das Nações Unidas, o presidente americano Joe Biden respondeu na mesma medida, dedicando quase todo o seu tempo no pódio à invasão russa da Ucrânia. Biden qualificou de “irresponsáveis” as “claras ameaças nucleares” da Rússia contra a Europa e condenou a “guerra brutal e descabida”. “O objetivo desta guerra é pura e simplesmente aniquilar o direito da Ucrânia de existir como país. Seja você quem for, viva onde viver, acredite no que acreditar, isso deveria gelar o sangue nas suas veias”, declarou. Com o inverno chegando e o custo da energia, na falta do gás russo, já forçando empresas a dispensar funcionários na Europa, a escalada bélica de Putin de certa forma favorece o esforço de Biden para manter viva a corrente de apoio à resistência ucraniana dentro e fora do país — até agora, os americanos não chiaram contra os 13,5 bilhões de dólares em armamentos e munição encaminhados por Washington a Kiev.
A principal tarefa dos reservistas russos, segundo o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, será reforçar a linha ao longo das fronteiras leste e sul da Ucrânia. A convocação mais que dobra o contingente de 200 000 soldados já em ação — cujos contratos, por sinal, foram prorrogados até o fim da “mobilização temporária”. Além disso, o Parlamento aprovou uma lei que endurece as punições para crimes como deserção e insubordinação. Segundo os serviços de inteligência ocidentais, as tropas russas na Ucrânia são inexperientes e desmotivadas e sentem o baque de 20 000 mortes até o momento.
Em paralelo à apresentação compulsória de reservistas, uma medida impopular que era descartada pelas autoridades militares até uma semana atrás, Putin confirmou a realização de referendos em quatro regiões ocupadas inteiramente ou quase — Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhya, onde se encontra a maior usina nuclear da Europa —, propondo sua anexação à Rússia. As votações entre 23 e 27 de setembro, manipuladas até a última urna, são cruciais para Putin justificar a convocação dos jovens sem parecer que está perdendo a guerra. No seu convoluto discurso em defesa da Mãe Rússia — “nossas forças armadas, dispostas em uma linha de frente de 1 000 quilômetros, enfrentam não só os batalhões neonazistas (tradução: a tropa comandada por Kiev), como a máquina militar inteira do Ocidente” —, Putin tentou explicar a necessidade de reforços. Se as áreas ocupadas forem anexadas, no voto ou na marra, o argumento ficaria mais forte. “Incorporar os territórios transformaria as operações militares ucranianas para liberar as áreas ocupadas em um ato de agressão contra a Rússia”, diz Tatyana Malyarenko, professora de relações internacionais na Universidade Nacional de Odessa.
Antecipando-se à insatisfação que a convocação provoca, a Promotoria de Moscou ameaçou com até quinze anos de prisão quem participasse de protestos ou publicasse chamados às ruas em redes sociais. Mesmo assim, houve manifestações, as primeiras desde a eclosão da guerra, com mais de 1 300 detidos. Reservistas lotaram os aeroportos e, no mesmo dia do discurso de Putin, voos partindo de Moscou saíram lotados, mesmo com a disparada nos preços das passagens.
No Ocidente, tanto o aumento do contingente militar quanto os referendos foram interpretados como reações de Putin aos tropeços militares e à perda de apoio na cúpula do governo. “A guerra claramente não está caminhando de acordo com os planos russos”, gabou-se Mykhailo Podoliak, um dos principais assessores do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. De um modo geral, os especialistas julgam que o conflito está longe de acabar. E Putin acuado pode ser ainda mais perigoso.
Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808