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Trump vai à TV aberta para defender o muro, a oposição também vai e rejeita o muro, e tudo continua exatamente como estava

Por Thais Navarro
Atualizado em 30 jul 2020, 19h58 - Publicado em 11 jan 2019, 07h00

Durante cerca de quinze minutos do horário nobre da TV aberta na terça 8, os americanos puderam assistir a um embate, se é que a palavra se aplica, de discursos redigidos previamente e lidos no teleprompter por personagens fora de seu papel. Primeiro, Donald Trump, aboletado no mais presidencial de todos os cenários, o Salão Oval da Casa Branca, desfiou os argumentos de sempre, com as imprecisões de sempre, em favor do indefectível muro com que pretende fechar a fronteira com o México a imigrantes ilegais. Depois, a deputada democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara, e Chuck Schumer, líder da minoria no Senado, repetiram, cada um, a recusa de sua bancada a financiar o muro e a urgência em desvinculá-lo da aprovação de um orçamento que permita a quitação de compromissos financeiros federais. Baixada a cortina, tudo continuava exatamente igual: 800 000 servidores públicos trabalhando sem receber há vinte dias, parques e museus fechados, e Trump encasquetado com a ideia de que só aprova um novo Orçamento se ele incluir 5,7 bilhões de dólares para seu paredão.

Cria da televisão e sempre à vontade em frente às câmeras, dessa vez Trump se mostrou apático e burocrático, mesmo quando apelou para frases de apelo emocional, como “quanto sangue americano terá de ser derramado para o Congresso fazer o que deve?” e “trata-se de uma escolha entre certo e errado, entre justiça e injustiça”. Voltou a bater na tecla relativamente nova da crise humanitária na fronteira — “uma crise do coração e uma crise da alma”, na qual “crianças caem nas mãos de coiotes sem escrúpulos e gangues brutais” e “uma em cada três mulheres é abusada sexualmente”. Como nem apoiadores mais arrebatados conseguem conciliar considerações morais e piedade com o Trump que todo mundo conhece, a fala entrou na conta de ato presidencial desempenhado por pura obrigação.

DUPLA DO NÃO – Schumer e Pelosi: “Pare de fabricar crise” (Nicholas Kamm/AFP)

No caso de Pelosi e Schumer, a maior preocupação foi manter a responsabilidade pelo chamado shut­down no colo do presidente. Segundo as pesquisas, 51% dos americanos acusam Trump pela crise e 32% responsabilizam os democratas. “Pare de fazer os americanos de reféns, de fabricar uma crise, e reabra o governo”, bradou Pelosi, antes de passar a palavra a Schumer — que, por sinal, em 2006, votou a favor de uma cerca de 1 000 quilômetros na fronteira.

Nem Trump acreditava que o discurso na TV abriria alguma brecha para o fim do impasse. Segundo o jornal The New York Times, ele disse isso, sem meias palavras, a um grupo de âncoras de televisão com quem almoçou no dia do pronunciamento. A saída está em um compromisso que ainda não dá sinal de vida. “Mas deve acontecer. Talvez incluam na proposta de Orçamento um pacote que ao mesmo tempo financie a segurança da fronteira e facilite a vida dos imigrantes que já estão nos Estados Unidos. E todo mundo sai ganhando”, diz o cientista político Kevin Kosar, do Instituto R Street, em Washington.

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ELAS NO CAPITÓLIO – As congressistas de 2019: um recorde de mulheres, minorias inéditas e novas posições políticas (Saul Loeb/AFP)
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Os democratas, enquanto isso, correm para tirar partido da opinião pública em uma questão de equilíbrio delicado. De posse do martelo de presidente da Câmara, Pelosi promete apresentar uma série de medidas pontuais para regularizar áreas do governo afetadas pelo estancamento de recursos — e não disfarça o gosto de, aos 78 anos, retomar a condição de mulher mais poderosa de Washington, posição que já ocupou antes, agora acompanhada de um pelotão de mulheres como nunca se viu no Congresso americano.

Entre os 435 deputados que tomaram posse em janeiro, 102 são mulheres (sem falar nas quatro entre os seis parlamentares sem votos do Distrito de Columbia e territórios), o maior número em todos os tempos. E que mulheres. Duas são muçulmanas, as primeiras da casa. Duas nasceram em tribos indígenas, um feito também inédito. O Texas, bem ali na fronteira com o México, elegeu as primeiras latinas. Massachusetts e Connecticut, baluartes da elite branca, têm suas primeiras representantes negras. E, ao fim da contagem de votos em Nova York, uma descendente de porto-riquenhos tornou-se, aos 29 anos, a deputada mais jovem — e bonita e carismática — a pisar no Capitólio. “Nós estamos no pedaço”, comemorou a irreverente Alexandria Ocaso-Cortez no Instagram, posando ao lado de algumas colegas.

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No Senado, os democratas perderam duas mulheres, mas elegeram cinco, fortalecendo uma guinada feminista diretamente relacionada aos polos de oposição ao republicano Trump. No Congresso agora renovado, 38% dos deputados e 36% dos senadores do Partido Democrata são mulheres; no Republicano, as porcentagens são 8% e 15%, respectivamente. Segundo os analistas, dois fatores impulsionaram a eleição de mais mulheres. Um tem a ver com as posições que várias delas defendem, a favor de minorias e de uma chacoalhada na forma como a política vem sendo feita — o que, na Washington de Trump, se traduz em um discurso que pende para aquele lado que os americanos batizam de “radical” ou “liberal”. O outro, óbvio, é o efeito do movimento antiassédio sexual que varreu o país no último ano e meio. “As questões que envolvem política sexual mobilizaram muitas mulheres e atraíram aquelas que não votavam havia muito tempo”, diz Caroline Andrew, diretora do centro de estudos de governança da Universidade de Ottawa, no Canadá.

Pelosi provavelmente se sentirá mais à vontade no mano a mano com Trump do que no trato com a nova geração de deputadas de seu partido. Congressista há mais de trinta anos, segura de seu papel nos meandros da liturgia do cargo, ela tem pela frente, por exemplo, o inconformismo da novata cheia de atitude AOC (como Alexandria Ocaso-­Cortez é chamada), que, para rebater um vídeo antigo vazado por adversários no qual aparece dançando com amigas, gravou outro saracoteando, ao som da mesma música, na porta de seu gabinete no Congresso — e fez um tremendo sucesso nas redes. Ou a palestino-americana Rashida Tlaib, que assumiu o cargo bradando, sobre Trump: “Impeachment no canalha” — canalha é uma versão edulcorada do termo usado.

A presença de mulheres na política, embora ainda bem menor que a dos homens, vem crescendo em quase todo o mundo de modo significativo: elas são 24% agora, ante 15,7% há quinze anos. “É uma tendência natural, decorrente da conscientização, pelas mulheres, de injustiças cometidas contra elas”, avalia a canadense Lori Williams, da Universidade Mount Royal, especialista no assunto. México e Argentina se destacam nesse movimento: praticamente metade do Legislativo mexicano é feminina; no argentino, elas são 39,5% (veja o quadro). Nos dois países vigoram cotas obrigatórias de mulheres nas chapas eleitorais, uma exigência que surtiu grande efeito, mas teve resultados menos satisfatórios no Brasil por culpa da infinidade de partidos e coligações. No Congresso que tomará posse em Brasília em fevereiro, 14,9% são mulheres. Um recorde também, mas que está longe de compensar o nada honroso 152º lugar no ranking de presença feminina no Parlamento computado entre 190 países.

Publicado em VEJA de 16 de janeiro de 2019, edição nº 2617

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