Prêmio de arquitetura comprova: a tendência é fazer mais com menos
Ao celebrar o britânico David Chipperfield com a principal láurea na área, o Pritzker sinalizou o tempo de obras pé no chão, que não castigam o ambiente
Um dos mais conhecidos e ousados arquitetos da atualidade, o canadense Frank Gehry conta que os tão característicos painéis curvos de suas obras à base de muito vidro e aço, hoje espalhadas por mais de quinze países, evocam velas. Nada mais adequado para um marinheiro que diz cultivar pelas aventuras a bordo do seu veleiro emoções tão intensas quanto as envolvidas em botar de pé edifícios como o da Fundação Louis Vuitton, que abriga em Paris um museu sempre tomado pelo melhor da arte, cujas formas lembram um grande barco. Gehry compõe uma ala de arquitetos celebridade, os starchitects, que carimbam paisagens mundo afora com seus imprevisíveis traços que ora chocam, ora encantam, mas nunca deixam de se fazer notar.
Pois eis que, numa era em que sustentabilidade passou a ser vocábulo dos mais enaltecidos e a busca por simplicidade já é ventilada em rodas antes afeitas aos excessos, uma nova corrente de mestres das pranchetas emerge justamente por colocar em prática uma escola de traços simples, capazes de produzir a mais pura beleza fazendo de suas construções cartões-postais que se integram perfeitamente ao cenário, sem necessariamente ser o centro dele.
O recém-anunciado Prêmio Pritzker, o mais respeitado da arquitetura, lançou holofotes globais sobre a tendência ao agraciar nesta última edição o britânico David Chipperfield, 69 anos, escolhido por oferecer um contraponto aos “designs exagerados” — seus desenhos, segundo o júri, proporcionam elegância e equilíbrio com ares atemporais. A láurea concedida a Chipperfield chacoalhou as placas tectônicas desse concorrido universo que já alçou ao panteão dos melhores, além do próprio Gehry, a iraquiana Zaha Hadid (1950-2016), contorcionista das estruturas, e Oscar Niemeyer (1907-2012), com suas inconfundíveis linhas convertidas em ícones da arquitetura moderna. Criado em uma fazenda no sudoeste inglês e habituado a lavrar a terra, o agora premiado, dono de esquadros bem pé no chão, diz a VEJA: “Talvez pela minha origem, sempre tentei descomplicar as coisas e não me afastar da minha realidade”. Adepto de formas geométricas básicas, sem grandes ornamentações, seus ambientes são realçados pela luz natural que se infiltra em recintos clean. “Encontro o belo no que é comum, natural”, define.
Um dos mantras da corrente encabeçada por Chipperfield é “fazer mais com menos” — e dá-lhe concreto e tantos outros materiais reciclados, tudo movido a energia solar para poupar o ambiente num momento em que ele é tão castigado. Também a ideia de espaços mais inclusivos adentra a obra do britânico com escritórios em Berlim, Milão e Xangai. Foi assim com a Procuradoria de Veneza, prédio do século XVI que não perdeu suas características originais depois de renovado por ele, seguindo gloriosa na Piazza San Marco, mas agora com uma parte aberta pela primeira vez ao público. Uma de suas mais festejadas intervenções, porém, foi no Neues Museum, de Berlim, onde estão o famoso busto da rainha egípcia Nefertiti e outros preciosos fragmentos da história. Bombardeado na II Guerra, também foi repaginado sem perder o espírito, e novas salas afloraram apoiadas em gigantes peças de concreto pré-fabricadas. Com seus Andy Warhols e Damien Hirsts, o Museu Jumex, na Cidade do México, é mais uma mostra de como o que é bonito não precisa se sobrepor ao resto. “A arquitetura é mais importante que o arquiteto”, defende Chipperfield.
Com o avanço da globalização, metrópoles ganharam visibilidade em toda a parte — e um dos caminhos encontrados para mantê-las atrativas foi transformá-las por meio de marcos arquitetônicos. “Nesse contexto, surgiu o star system, em que figuras renomadas podem mudar a dinâmica de uma cidade com seus projetos impactantes”, explica Leandro Medrano, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Nos anos 1990, a volta por cima da degradada Bilbao, na Espanha, ganhou impulso com a inauguração do Museu Guggenheim, de Frank Gehry — o que ficou batizado como “efeito Bilbao”, observado na também espanhola Valência, onde o incansável Santiago Calatrava, que usa da engenharia para bolar estruturas dinâmicas, plantou a espetacular e muito criticada Cidade das Artes e das Ciências.
Termômetro da arquitetura, o Pritzker já vinha sinalizando para a valorização da vertente de mais discrição e com propósito social, condecorando em 2022 Francis Kéré, de Burkina Faso, dedicado à construção de escolas e centros comunitários na África, e, antes, os franceses Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal, voltados para habitações para a população mais pobre (veja um exemplo brasileiro em Primeira Pessoa, na pág. 78). Enveredando pela mesma direção, a 18ª Mostra Internacional de Arquitetura de Veneza, a partir de 20 de maio, será outra vitrine global em contraposição aos prédios mirabolantes. Não, eles não vão desaparecer. “O mundo sempre vai precisar de um pouco dessa fiesta, mas o tempo dos heróis da arquitetura está chegando ao fim”, acredita Chipperfield. Para ele e a turma que não para de se inspirar nele, é no traço simples que a beleza se revela.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833