Por que despenca o número de visitantes no Reino Unido
O controle ineficiente da crise sanitária e os efeitos do Brexit são algumas das causas da dor de cabeça em Downing Street
O Reino Unido tem atrações turísticas inescapáveis. Em Londres, há os obrigatórios Palácio de Buckingham, London Eye e Big Ben. Em Liverpool, o emocionante Museu dos Beatles. Em Salisbury, o enigmático sítio pré-histórico de Stonehenge. Na Escócia, os lendários Castelos de Edimburgo. No País de Gales, a charmosa Cardiff. Os exemplos acima já seriam suficientes para atrair uma legião de visitantes, mas eles, surpreendentemente, sumiram. Na contramão do que ocorre com os vizinhos, a Grã-Bretanha, que se acostumou a integrar a lista de nações mais procuradas por turistas, vai fechar 2021 com números inferiores aos de 2020 e distantes da era pré-pandemia — e pré-Brexit, portanto. Eis aí mais uma dor de cabeça em Downing Street, a residência oficial do enrolado primeiro-ministro Boris Johnson.
O Visit Britain, o Ministério do Turismo britânico, atualizou em 7,7 milhões o número de visitantes previstos até o fim de 2021, o que representaria uma redução de 30% sobre os dados do ano anterior. É resultado de uma desastrosa combinação: do controle ineficiente da Covid-19 com os previsíveis efeitos do divórcio com a União Europeia (UE). Selado em janeiro de 2020, o Brexit foi uma das bandeiras de Johnson, sob a promessa de retomar o controle das fronteiras e preservar empregos e benefícios e, de maneira mais romântica, restaurar o orgulho na Terra da Rainha. Por ora, todos os tiros têm saído pela culatra.
Nos últimos meses, a Inglaterra enfrentou uma grave crise de abastecimento de combustível e alimentos causada pela falta de motoristas de caminhões, o que obrigou o governo a relaxar algumas medidas. A gestão da pandemia também é alvo de críticas. Apesar de ter sido o primeiro país da Europa a lançar um programa de vacinação, o Reino Unido tem apenas 68% da população imunizada (quase 20% a menos que Portugal) e o terceiro maior número de contaminações no último mês, atrás apenas de Estados Unidos e Alemanha. Johnson, constantemente flagrado sem máscara, se escora no conceito de liberdade individual para minimizar os riscos da pandemia, mas a realidade mostrou que ele está equivocado.
Para especialistas, o Reino Unido vive uma crise de imagem. “O que chega para o resto do mundo são só notícias ruins, e isso gera um impacto cumulativo”, diz Kai Enno Lehmann, professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo. “Diante de tantos problemas, o que levaria alguém a querer passar férias por lá agora?”, questiona. Não se trata de apenas querer. Desde 1º de outubro, cidadãos da União Europeia não podem mais viajar para o Reino Unido apenas com sua carteira de identidade, e sim com passaporte, algo que cerca de 75% dos europeus não têm.
Em janeiro, o governo deu outra canelada ao mexer em um incentivo que isentava cidadãos de fora da União Europeia de pagar impostos sobre produtos comprados no Reino Unido, o que é praxe no continente. Em vez de ampliar o benefício aos europeus, os britânicos decidiram aboli-lo para todos, quase que induzindo os turistas a realizar compras mais baratas, por exemplo, na vizinha Paris. A burocracia nas fronteiras também afugentou jovens estudantes dispostos a aprender o idioma de Shakespeare em cursos de curta duração. Destinos como Irlanda e Malta vêm preenchendo esse vácuo.
Johnson e sua turma insistem em culpar a pandemia, mas ela não é a única responsável. Na França, que tampouco foi um exemplo no combate ao vírus, o turismo cresceu 30% em relação ao ano passado. A Grécia já atingiu o patamar semelhante ao de 2019. “Nem mesmo os apoiadores fanáticos do Brexit apontam qualquer benefício econômico”, ressalta Kai Lehmann. “Agora é preciso administrar a crise, que vai continuar por muito tempo.” Johnson ainda goza de certo prestígio com os britânicos, mas pode ter de afrouxar ainda mais o Brexit. O Visit Britain estima para 2022 a recuperação de 68% dos níveis anteriores à Covid-19, mas alerta: a previsão foi feita antes da descoberta da variante ômicron (leia mais na pág. 58). O que já se sabe é que a grama do lado de lá do Canal da Mancha anda mais verde.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767