Por dentro da fantástica engrenagem da revolução ‘kultural’ da Coreia do Sul
Reportagem de VEJA foi conhecer de perto o tsunâmi que conquistou o mundo — a cultura K, de canções adesivas e drama incontido. Não há como evitá-la
Foi como a reinvenção de um país por meio da música, da televisão, do cinema e da literatura (com direito, inclusive, ao Nobel de 2024, para Han Kang). A Coreia do Sul vive um momento histórico, de permanente expansão, em fio que não para de ser estendido: o fenômeno da chamada k-culture, alimentada pelo k-pop das canções juvenis e as histórias de amor do k-drama. Até muito recentemente, os coreanos eram conhecidos fora de suas fronteiras pelos celulares da Samsung, os televisores da LG e os carros da Hyundai, entre outras marcas industriais, além do sistema de educação renovado e rigoroso.
Não é mais assim, apenas. Celebra-se, hoje, algo um bocado mais imaterial, nas não menos valioso. É um mercado — regional e de exportação, é claro — avaliado em mais de 70 bilhões de dólares e que deve dobrar até 2030. Não é fortaleza criada do acaso, em canções que grudam e roteiros para triscar o coração. Trata-se de engrenagem incentivada pelo Estado desde os anos 1990, agora no apogeu. É um projeto de nação cuidadosamente montado, uma máquina de entretenimento que não quer guerra. Deu-se a faísca em 1994, depois de um relatório oficial revelar que o blockbuster americano Parque dos Dinossauros, sozinho, tinha lucrado mais do que os 1,5 milhão de automóveis exportados pelo país asiático para os Estados Unidos.
A reportagem de VEJA foi conhecer os detalhes da fascinante engrenagem batizada com uma alcunha ampla, a hallyu, ou onda coreana, que virou um inofensivo tsunâmi global. A capital, Seul, é um microcosmo desse caldeirão criativo afeito a atrair gente de todos os cantos e cantões — do Brasil, inclusive, de onde partiram no ano passado mais de 20 000 pessoas para ver, cantar e dançar em torno da apoteose. Há escolas e academias de formação dos idols, elas ou eles, como são chamadas as celebridades K. Há uma arena para shows exclusivos de k-pop com direito a resort de hospedagem, como na Disney. Existe um museu de k-drama, além de uma profusão de lojas temáticas espalhadas em shoppings e restaurantes com cardápios amparados nas séries de televisão. A estatística ilumina o tamanho do universo pop.
O governo planeja injetar 3,4 trilhões de wons, o equivalente a 2,5 bilhões de dólares, pelos próximos cinco anos, nos negócios em torno da vanguarda dançante e lacrimosa. O objetivo é, até 2027, sair da posição de oitava maior indústria de conteúdo global para ficar entre os quatro maiores — atualmente com a liderança de Estados Unidos, China e Japão. Segundo uma pesquisa do Spotify, comparando o ano de 2018 com 2023, os streamings de k-pop cresceram 362%. O Brasil, sublinhe-se, é o quinto país que mais consome k-pop, atrás de Indonésia, México, Japão e Tailândia. “Houve, na Coreia do Sul, uma confluência de fatores positivos que permitiram o nascimento de um capítulo cultural vigoroso”, diz Cheul Hong Kim, diretor do Centro Cultural Coreano no Brasil. “O desenvolvimento econômico, associado ao alto grau de sucesso educacional e à força da democracia, além da onipresença das redes sociais, criou o terreno ideal.” Somem-se os novos humores planetários, de buscar conhecimento para além das fronteiras do Ocidente, no anseio pela diversidade, e, heureca, viva a relevância de tudo que é K. Há, hoje, ao menos 108 000 companhias de entretenimento, pequenas, médias e grandes, em crescimento de 9% ao ano. De 2017 a 2021, a Coreia do Sul vendeu para o exterior produtos que renderam 12,4 bilhões de dólares, em subida anual de 4%. É muita coisa.
Um modo de enxergar a explosão desse caleidoscópio é ingressar no K-Link Festival, em sua segunda edição, organizado no mês passado pelo governo sul-coreano em parceria com a emissora de TV SBS. Ele reuniu 15 000 pessoas na arena do Inspire Entertainment Resort, um complexo multifuncional montado para espetáculos e premiações. Todos os ingressos foram gratuitos. Outros dois estádios para shows de k-pop devem ficar prontos em 2025. Atraiu coreanos, sem dúvida, mas pelo menos 10 000 fãs da China, do Japão, de países da Europa e dos Estados Unidos. Emoldurados por telões, fogos de artifício, iluminação grandiosa e dezenas de câmeras movidas por inteligência artificial para captar cada detalhe do palco em 360 graus, desfilaram nomes queridos como Riize, aespa, ITZY, NCT Wish, The Boyz, tripleS e o ator e músico Minho, do grupo SHINee (se você não sabe quem são, fale com seus filhos, eles certamente saberão). Eventos paralelos ofereciam oficinas de maquiagem e exposições de hanboks, as roupas tradicionais.
Ansiosa, a adolescente chinesa Xu Jialu, de olhos cuidadosamente delineados, parecia em êxtase. “Não posso perder nada”, disse. “Mas quero mesmo assistir aos shows do NCT Wish e do Sion.” Na bolsa, levava lanternas em formatos e cores atrelados a seus grupos prediletos (usadas quando as luzes se apagam) e bichinhos de pelúcia e plástico — além do smartphone todo enfeitado, é claro. Não havia hipótese de Xu sair desapontada, dado o zelo com os detalhes em torno do palco central e de outros dois, paralelos, em que desfilam os ídolos — ou melhor, os idols. “Mais do que apenas assistir aos shows, queremos que os fãs vivenciem o universo do k-pop”, afirma Changwoo Kim, diretor de produção e negócios da SBS.
É mundo que brota colorido e variado não por acaso — ainda que no início tenha incomodado os conservadores, até se revelou motor de (muito) dinheiro. É um modo de vida que se ensina na escola, e não há aqui nenhuma metáfora. É assim mesmo. Na Hanlim School, no bairro de Songpa, os 1 170 alunos do equivalente ao ensino médio brasileiro treinam para virar artistas, modelos e celebridades. Um imenso espelho, estrategicamente posicionado, é o ímã de atração de jovens de cabelos descoloridos. “É um estímulo para que registrem e compartilhem sua criatividade nas redes sociais”, diz a diretora Ji Yeon Kim. O lema: estimular a expressão artística e digital dos jovens. Não à toa, saíram de lá — e estudam lá, ainda — grandes talentos do estilo K.
Um dos ex-alunos é Cha Eun-woo, um dos atores mais bem pagos da Coreia do Sul. A lista de espera é imensa, inclusive para estrangeiros. “Mais do que formar artistas, queremos formar pessoas íntegras”, afirma Hu Ming So, professor do departamento de artes cênicas. “Aqui não precisa de nota alta para entrar, estamos preocupados com o talento dos alunos e a integridade.” A sólida reputação da Hanlim atrai o interesse de grandes empresas de entretenimento, que monitoram os estudantes antes mesmo da formatura. Um exemplo atual é a atriz Hwang Jia, aluna da escola e protagonista jovem de Rainha das Lágrimas, um dos vinte títulos mais assistidos mundialmente na Netflix em 2024, com mais de 682 milhões de visualizações. Ela é aluna do segundo ano. Jia também protagoniza o filme Moon Walk, previsto para estrear em 2025, uma narrativa sobre conflitos familiares na qual interpreta a personagem principal. “Nasci em Los Angeles, mas a Coreia sempre foi minha inspiração. A escola é um lugar dos sonhos, com um ambiente acolhedor e amigos que se apoiam”, diz ela, que teve de suar para vencer, porque o início é sempre duro. Uma outra academia, a Ktown4u, recebe crianças a partir de 8 anos de idade a caminho de virarem idols. “A aparência física, as habilidades vocais e de dança são relevantes, mas, em geral, de 2 000 candidatos, apenas um poderá estrear no mercado de k-pop”, diz Kyungmin Kim, diretor de negócios externos do lugar. E, quando estreiam, sai de baixo.
Os estúdios de gravação que recebem novas e futuras estrelas são como um tubo de ensaio certeiro da fama que despontará, com certeza, porque tudo é calculado, tudo tem métrica. Na KBS, um dos principais canais sul-coreanos, a gravação da novela Meu Doce Casamento, iniciada em 7 de outubro e já em exibição na Apple TV+, há sorriso e tensão em igual medida, em torno de personagens que indagam o significado da vida, da felicidade e da tristeza, do casamento e do divórcio — ingredientes inescapáveis do que virou mania, como os folhetins da Globo de tempos passados. A kultura com K tem vencido, interessante demais para ser negligenciada. E já tem história e heróis fundadores. Em que outro país, a não ser na Coreia do Sul, haveria na capital uma estátua a reproduzir os gestos clássicos de um pioneiro, Psy, o primeiro a alcançar 1 bilhão de visualizações no YouTube, o intérprete de Gangnam Style, de 2012, pedra fundamental da imparável maré que ganharia novo ímpeto, nos anos 2010, com o megassucesso do boy group BTS? E vem muito mais por aí, saindo dos bancos escolares.
Chance de sucesso: 100%
Cabelos arrumados, maquiagens exuberantes e unhas milimetricamente cuidadas. Voz baixa, doce, uns gritinhos combinados e um discurso muito treinado. Eis a novíssima sensação do k-pop, a girl band Fifty Fifty, criada em 2022, no pós-pandemia. Formada por Keena, Hana, Athena, Chanelle e Yewon, a trupe acaba de lançar o EP Love Tune, com seis faixas, entre elas, SOS, hit instantâneo. A canção viralizou nas redes sociais e já tem mais de 8 milhões de audições apenas no Spotify — ao todo, o grupo teve 8,7 milhões de ouvintes na plataforma apenas em outubro. A balada também alcançou o primeiro lugar na parada de tendências musicais no YouTube e ficou entre as 100 músicas mais executadas no Melon, a plataforma de streaming de música da Coreia do Sul. Assim que foi lançada, ocupou a sétima posição na revista especializada Billboard. “Nesse EP, há estilos de música diferentes. Foi um grande estímulo para o grupo, mas, ao mesmo tempo, ficamos felizes por nos desafiar”, disse Hana a VEJA. Keena faz coro e completa: “Ter obstáculos é sempre muito bom”.
O Fifty Fifty dedica-se, agora, à preparação de uma turnê internacional e não descarta a hipótese de vir para o Brasil. “Sei que os fãs do Brasil têm muita paixão”, afirma Athena. “Por isso, queremos nos preparar muito bem para encontrá-los.” O sonho das meninas é conhecer o Rio de Janeiro, em particular, o Cristo Redentor. Fãs de Luísa Sonza, a quem conheceram em um evento na Coreia, dizem ter se apaixonado pela brasileira.
Apesar das respostas quase em uníssono, é ilusão imaginar que as cinco andem sempre grudadas. Não. Umas gostam de esportes, outras de cinema. Algumas de meditação, outras de agitação. Assim anda a roda da banda que ganhou corpo com Cupid e, também, ao participar da trilha do filme Barbie e, hoje, virou mania de quem já aderiu ao ritmo sul-coreano de pegada internacional. Até que brote um novo grupo.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919